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quarta-feira, 3 de outubro de 2018

IMPROCEDÊNCIA DA OBJEÇÃO QUE SUSTENTA SEREM AS EXORTAÇÕES A UM VIVER PIEDOSO INÚTEIS E DESNECESSÁRIAS, NEM SE DEVE ENSINAR A PREDESTINAÇÃO PARA NÃO EMPEDERNIR OS INCRÉDULOS

Maldosa e impudentemente, contudo, outros caluniam esta doutrina, como se ela anulasse o efeito de todas as exortações a um viver piedoso. Acerca desta matéria grande malevolência sofreu outrora Agostinho, malevolência que dissipou com seu livro De Correptione et Gratia: Ad Valentinum [Da Correção e da Graça: AValentino], cuja leitura agradará prontamente a todos os piedosos e dóceis. Entretanto, aqui abordarei apenas umas poucas coisas, as quais, segundo espero, haverão de satisfazer aos probos e não-contenciosos. Quão declarado e eloqüente pregoeiro da eleição graciosa foi Paulo, já se viu previamente. Porventura ele foi, por isso, frio em advertir e exortar? Comparem estes bons zelotes a veemência dele com a sua: achar-se-á neles antes gelo em vez de incrível fervor daquele. E na verdade, este princípio remove todas as dificuldades: não fomos chamados à imundície [1Ts 4.7], mas, ao contrário, “para que cada um possua seu vaso em honra” etc. [1Ts 4.4]; então, que “somos feitura de Deus, criados para as boas obras que foram preparadas de antemão para que nelas andemos” [Ef 2.10]. Em suma, aqueles que são medianamente versados em Paulo compreenderão, sem demonstração de longa, quão aptamente concilie ele coisas que estes imaginam pugnarem entre si. Assim, Cristo preceitua que se creia nele. Todavia, sua determinação nem é falsa, nem contrária ao preceito, quando diz: “Ninguém pode vir a mim, senão aquele a quem foi dado por meu Pai” [Jo 6.65]. Portanto, que esta doutrina tenha seu curso de pregação, pregação esta que conduza os homens à fé e, com proveito contínuo, os mantenha na perseverança. Nem tampouco seja impedido o conhecimento da predestinação, para que aqueles que obedecem não se ensoberbeçam como se proviesse deles mesmos, mas se gloriem no Senhor. Não sem causa diz Cristo: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça” [Mt 13.9]. Portanto, quando exortamos e pregamos, os que são dotados de ouvidos de bom grado obedecem; os que, porém, carecem de ouvidos, neles se cumpre o que foi escrito: “Para que, ouvindo, não ouçam” [Is 6.9]. “Mas, por que”, diz Agostinho, “aqueles os possuem e estes não? ‘Quem conheceu a mente do Senhor?’ [Rm 11.34]. Porventura por isso se deve negar o que é evidente, só porque não se pode compreender o que é oculto?” Tudo isso tomei fielmente de Agostinho. Mas, visto ser bem provável que suas palavras sejam de mais autoridade que as minhas, então que venham a lumeos próprios termos que nele se lêem: “Se alguns”, diz ele, “depois de ouvir isto se entregam à negligência e abandonando todo o esforço se vão após seus apetites e desejos, devemos por esta causa concluir que é falso o que se disse da presciência de Deus? Se Deus conheceu de antemão que eles haveriam de ser bons, porventura não serão bons, por maior que seja a degradação em que agora se revolvam? E se conheceu de antemão que seriam maus, porventura não serão maus, por maior que seja a bondade em que agora se vejam? Portanto, porventura ou devam ser negadas ou caladas em razão de causas desta natureza as coisas que dizem ser verdadeiras acerca da presciência de Deus, então, especialmente quando se cala, se cai em outros erros?
“Uma”, diz ele, “é a razão de calar o verdadeiro, outra a necessidade de dizer o verdadeiro. Seria muito longo procurar saber todas as coisas para calar o verdadeiro, das quais, no entanto, uma é esta: que não se tornam piores os que não entendem, quando queremos fazer mais doutos aqueles que entendem, os quais, dizendo nós algo desse gênero, de fato não se fazem mais doutos, mas tampouco piores se tornam. Supondo, pois, que dizer a verdade produza o efeito de que ao dizer mo-la, o que não a entende se faça pior, e que se a calarmos, o que a pode entender corra algum risco, o que deveríamos fazer em tal caso? É que não deveríamos dizer a verdade para que os que a podem entender a entendam, e não calar, de maneira que ambos fiquem ignorantes, e que mesmo o mais entendido se faça pior, quando a devia ouvir e entender, outros muitos a aprenderiam por meio dele? E não queremos dizer o que era lícito dizer, como o atesta a Escritura. Ora, certamente tememos que, falando nós, se ofenda aquele que não pode receber a verdade; porém não tememos que, silenciando nós, aquele que pode receber a verdade seja apanhado pela falsidade.” Mais, afinal, condensando resumidamente esta opinião, ele a confirma ainda mais claramente: “Por essa razão, se os apóstolos e os doutores da Igreja que as seguiram fizeram uma e outra destas duas coisas – tratar piedosamente da eterna eleição dos fiéis e mantê-los sob a disciplina de uma vida pia –, por que é que, cercados da invencível potência da verdade, esses nossos doutores pensam falar corretamente que não se deve pregar essa doutrina ao povo, ainda que seja verdadeiro o que se diz da predestinação? De fato, impõe-se pregá-la irrestritamente, para que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça [Mt 11.15; Mc 4.9; Lc 8.8]. Quem, no entanto, os tem, se os não recebeu daquele que promete havê-los de dar? Por certo que aquele que não recebe rejeite, enquanto que, aquele que recebe, recebe-a, tome dela e a beba, beba e viva. Pois, assim como a piedade deve ser pregada, para que Deus seja corretamente cultuado, assim também a predestinação, para que, quem tem ouvidos para ouvir, se glorie na graça de Deus e em Deus, não em si próprio.

João Calvino