Antes de tudo, se buscamos a paterna clemência de Deus e seu ânimo propício,
nossos olhos têm que se volver para Cristo, em quem tão-só repousa o Espírito do
Pai[Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22]. Se buscamos a salvação, a vida e a imortalidade do
reino celeste, então há de se buscar também refúgio não em outro, quando somente
ele é a fonte da vida, a âncora da salvação, o herdeiro do reino dos céus. Ora, a que
visa a eleição senão a que, adotados pelo Pai celestial na posição de filhos, por seu
favor obtenhamos salvação e imortalidade? Por mais que a revolvas e esquadrinhes,
no entanto compreenderás que seu fim último não se estende para além disso.
Conseqüentemente, aqueles a quem Deus tomou para si por filhos, não se diz que
foram eleitos em si próprios, mas em seu Cristo [Ef 1.4], porquanto somente nele
podia amá-los, nem os podia honrar com a herança de seu reino, a não ser que antes
os fizesse co-participantes dele. Porque, se nele fomos eleitos, acharemos a certeza
de nossa eleição não em nós mesmos, e de fato nem em Deus, o Pai, se o imaginamos
isoladamente à parte do Filho. Cristo é, pois, o espelho no qual é indispensável
que, sem engano, contemplemos nossa eleição. Porque, sendo ele Aquele a cujo
corpo o Pai determinou incorporar a quem desde a eternidade quis que fossem seus,
de forma que tenha como filhos a todos quantos reconhece como membros do mesmo,
temos um testemunho solidamente firme e evidente de que estamos escritos no
livro da vida [Ap 21.27], se mantemos comunhão com Cristo.374
Com efeito, ele nos dotou de sua segura comunhão, quando, mediante a pregação
do evangelho, testificou nos haver sido dado pelo Pai, para que fosse nosso
juntamente com todas as suas boas coisas[Rm 8.32]. Diz-se que somos revestidos
dele [Rm 13.14], que nele crescemos [Ef 4.15] para que vivamos, porque ele vive.
Tantas vezes se repete este ensino: o Pai não poupou ao Filho Unigênito [Rm 8.32],
“para que quem nele crê não pereça [Jo 3.16]”. Aquele, porém, “que nele crê”, dizse
que “passou da morte para a vida” [Jo 5.24]. Neste sentido, ele se chama o pão da
vida [Jo 5.35], o qual quem o comer jamais morrerá [Jo 6.51, 58]. Afirmo ainda que
ele é quem testificou que a todos os que o receberem pela fé, o Pai os terá por filhos.
Se desejamos algo mais do que sermos contados entre os filhos e herdeiros de Deus,
faz-se necessário que subamos acima de Cristo. Se esta nos é a meta suprema, quão
grandemente desvairamos buscando fora dele o que não só já conseguimos nele,
mas também só se pode achar nele?
Além disso, uma vez que Cristo seja a eterna sabedoria do Pai, sua imutável
verdade, seu firme conselho, não há por que temer que o que nos disse em sua Palavra
dissinta sequer um mínimo daquela vontade do Pai que buscamos, senão que, antes,
no-lo revela fielmente qual foi desde o princípio e como sem pré haverá de ser. A
aplicação prática desta doutrina deve vigorar também em nossas preces. Ora, ainda
que a fé baseada em nossa eleição nos anima a invocar a Deus, entretanto, quando
formulamos nossas orações, absurdo seria impô-la a Deus, ou impor um acordo com
esta condição: “Senhor, se fui eleito, então que me ouças”, quando ele quer que estejamos
contentes com suas promessas, tampouco que busquemos em outro lugar se
porventura ele nos haja de ser clemente. Esta prudência nos desvencilhará de muitos
laços, se sabemos acomodar o uso certo o que foi escrito retamente, porém não arrastemos
inconsideradamente para aqui e para ali o que deveria ser restringido.
João Calvino