Total de visualizações de página

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

TAMPOUCO É PROCEDENTE QUE 1 TIMÓTEO 2.4, 2 PEDRO 3.9 E OUTRAS PASSAGENS CONTRADIZEM A DOUTRINA DA REPROVAÇÃO

Acrescenta-se, em segundo lugar, a passagem de Paulo, onde o Apóstolo ensina que Deus quer que todos se salvem [1Tm 2.4], da qual, visto que a razão da passagem supracitada é diferente, no entanto, algo é comum. Respondo, em primeiro lugar, que à luz do contexto se faz evidente como ele o quer, pois Paulo acopla estes dois pontos: que Deus quer que sejam salvos, e que cheguem ao conhecimento da verdade. Se, como dizem, foi determinado pelo eterno conselho de Deus que todos sejam feitos participantes da doutrina da vida, o que significam as palavras de Moisés: “que nação há tão grande, que tenha deuses tão chegados, como o Senhor nosso Deus, todas as vezes que o invocamos?” [Dt 4.7]. Qual é a causa de Deus privar a muitos povos da luz do evangelho da qual outros usufruíam? Qual é a causa de o puro conhecimento da doutrina da piedade nunca haver chegado a alguns, quando outros mal tenham degustado certos rudimentos obscuros? Daqui se pode concluir claramente qual é a intenção de Paulo. Ele havia preceituado a Timóteo que se formulassem na Igreja orações solenes em favor dos reis e príncipes [1Tm 2.1, 2]. Como, porém, parece algo absurdo que orações sejam derramadas a Deus em favor de um gênero de homens quase irremediavelmente perdidos (porquanto não só eram todos estranhos ao corpo de Cristo, mas até porfiavam, com todas suas forças, por esmagar-lhe o reino), acrescenta que isso é “aceitável a Deus, o qual quer que todos os homens sejam salvos” [1Tm 2.3, 4]. Com isso, realmente outra não é sua intenção, senão dizer que Deus não fechou o caminho da salvação a nenhuma ordem de homens, senão que, antes, de tal modo derramou sua misericórdia, que não quer que algum dentre eles seja dela carente.
Outras passagens não declaram o que o Senhor, em seu juízo secreto, determinou acerca de todos, mas proclamam que o perdão está à disposição de todos os pecadores que, simplesmente, se volvam a buscá-lo. Ora, se insistem com mais tenacidade, dizendo que Deus quer ter misericórdia de todos [Rm 11.32], eu argumentarei em contrário, com base no que está escrito em outro lugar: “Nosso Deus está no céu, onde faz tudo quanto queira” [Sl 115.3]. Assim, pois, se haverá de interpretar esta palavra, com a qual esta outra concorda: “Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu quiser ter compaixão” [Ex 33.19]. Quem decide de quem deva ter misericórdia, não a comunica a todos. Mas, uma vez que se evidencia claramente que aí não se trata de indivíduos, um a um, mas de classes de homens, então a discussão não deve alongar-se mais. Todavia, é preciso notar, ao mesmo tempo, que Paulo não está expondo o que Deus sempre faz, por toda parte e em todos, mas que o deixemos livre para, por fim, fazer participantes da doutrina celestial aos reis e magistrados, ainda que, em razão de sua cegueira, se insurjam furiosos contra ela. Parecem insistir ainda mais fortemente com a passagem de Pedro: “Deus não quer que alguém se perca, senão que todos venham ao arrependimento” [2Pe 3.9]. Com efeito, a solução da dificuldadeocorre já na segunda palavra, porque a vontade de que venham ao arrependimento não se pode entender ser outra senão aquela que a cada passo se ensina na Escritura. Não há dúvida de que a conversão está na mão de Deus: uma vez que a uns poucos promete que lhes dará um coração de carne, a outros deixando-lhes o coração de pedra [Ez 36.26], então que seja ele interrogado se porventura queira converter a todos. Aliás, é verdade que, a não ser que Deus esteja pronto a receber os que lhe imploram a misericórdia, ao mesmo tempo cairia por terra esta declaração: “Tornai-vos para mim, diz o Senhor dos Exércitos, e eu me tornarei para vós” [Zc 1.3], mas reitero que nenhum dos mortais recorre a Deus, senão aquele que é divinamente antecipado. E se o arrependimento estivesse no arbítrio do homem, Paulo não diria: “se porventura Deus lhes dará o arrependimento para conhecerem a verdade” [2Tm 2.25]. De fato, a não ser que o mesmo Deus, que com sua voz a todos exorta ao arrependimento, a si conduzisse os eleitos, Jeremias não diria: “Converte-me, e me converterei ... Na verdade, depois que me converti, tive arrependimento” [Jr 31.18, 19].

João Calvino