Total de visualizações de página

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

A FUNÇÃO PEDAGÓGICA DA IGREJA, MERCÊ DE SEU MINISTÉRIO, LITURGIA E SANTUÁRIO

Mas, avancemos expondo o que é próprio desta matéria. Paulo escreve que Cristo “deu uns para para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo” [Ef 4.10-13]. Vemos como Deus, que poderia levar os seus à perfeição num instante, contudo não queria que eles crescessem à idade adulta senão pela educação da Igreja; vemos expressar-se o modo pelo qual esta educação se processa: que aos pastores foi incumbida a pregação da doutrina celeste; vemos que todos, à uma, estão sujeitos à mesma disposição, de sorte que se permitam ser dirigidos, com espírito brando e dócil, pelos mestres criados para esta função. E com esta marca Isaías assinalara outrora o reino de Cristo: “Meu Espírito, que está em ti, e as palavras que pus em tua boca, jamais se apartarão nem de tua boca, nem da boca de tua semente e de seus descendentes” [Is 59.21]. Do quê se segue que são dignos de que pereçam de fome e inanição todos e quaisquer que desprezam o alimento espiritual da alma a si divinamente oferecido pelas mãos da Igreja. Deus instila em nós a fé, mas pela instrumentalidade de seu evangelho, como adverte Paulo, de que “a fé vem do ouvir” [Rm 10.17], assim como também em Deus reside seu poder de salvar, mas, segundo atesta o próprio Paulo, o exibe e o desenvolve na pregação do evangelho [Rm 1.16]. Com este propósito Deus outrora quis que se realizassem assembléias sacras no santuário, a fim de que a doutrina proferida pela boca do sacerdote alimentasse o senso comum da fé. Tampouco visam a outra coisa esses tiítulos magníficos onde o templo é chamado “o lugar do descanso de Deus” [Sl 132.14], o santuário de seu domicílio [Is 57.15]; onde se diz ele estar assentado entre querubins [Sl 80.1]; donde apreço, amor, reverência e dignidade granjeiem ao ministério da doutrina celeste, aos quais, de outra sorte, derrogaria não pouco a aparência de um homem mortal e desprezado. Portanto, para que saibamos que diante de nós põe um tesouro inestimável em vasos de barro [2Co 4.7], Deus mesmo se apresenta em nosso meio; e visto que ele é o Autor desta ordem, quer ser reconhecido presente em sua instituição. Conseqüentemente, depois que proibiu aos seus a se devotarem a augúrios, a adivinhações, a artes mágicas, a necromancia e a outras superstições [Lv 19.31; Dt 18.10, 11], acrescenta que dará o que em tudo deva ser suficiente, isto é, que nunca estarão destituídos de profetas [Dt 18.15]. Mas, assim como não delegou aos anjos o povo antigo, pelo contrário, suscitou mestres da terra que, de fato, desempenhassem o ofício angélico, assim também quer ensinar-nos por meios humanos. Com efeito, assim como outrora Deus não se contentou com a mera lei, mas acrescentou sacerdotes que fossem intérpretes, de cujos lábios o povo lhe indagasse o verdadeiro sentido, assim também hoje não quer apenas que lhe estejamos atentos à leitura, mas ainda lhe prepõe mestres por cuja obra sejamos ajudados, coisas tais de dupla utilidade, pois, de um lado, nos prova a obediência por meio de ótimo teste, quando ouvimos seus ministros falando não de forma distinta dele mesmo; por outro lado, também nos socorre em nossa fraqueza quando, para nos atrair a si, nos prefere falar através de intérpretes, em vez de atroar em sua majestade e fazer-nos fugir dele. E de fato, quanto nos convenha esta forma familiar de ensinar, todos os piedosos sentem o pavor com que, com razão, a majestade de Deus os consterna. Mas, os que pensam que a autoridade da doutrina é desprezada pela baixa condição dos homens que foram chamados a ensiná-la, estes põem à mostra sua ingratidão, porquanto, entre tantos dotes preclaros com os quais Deus adornou o gênero humano, esta prerrogativa é singular: que a si digna consagrar as bocas e línguas dos homens, para que neles faça ressoar sua própria voz. Por isso nós também, de nossa parte, não sejamos remissos em abraçar obedientemente a doutrina da salvação proposta por seu mandado e por sua boca, uma vez que, ainda que o poder de Deus não esteja atado a meios externos, contudo nos atou ao modo ordinário de ensinar, o qual, embora recusem suster homens fanáticos, se envolvem em muitos laços fatais. A muitos os impele ou a soberba, ou o desdém, ou a inveja, de sorte que se persuadam de poder fruir de suficiente proveito lendo e meditando em particular, e com isso desprezam as reuniões públicas e consideram a pregação como sendo supérflua. Mas, uma vez que, quanto está em si, quebram ou rompem o sagrado vínculo da unidade, ninguém escapa à justa pena deste ímpio divórcio, sem que se deixe enfeitiçar por erros pestíferos e por delírios os mais horríveis. Portanto, a fim de entre nós vicejar a pura simplicidade da fé, não relutemos em usar deste exercício da piedade que Deus, por sua instituição, nos mostrou ser necessário e tão insistentemente recomenda. Quem dissesse que se devem fechar os ouvidos para Deus, ninguém jamais se achou, nem sequer dos cães mais petulantes; mas, em todos os séculos, embate difícil têm enfrentado os profetas e os mestres pios contra os ímpios, cuja obstinação não pode jamais suportar este jugo: que sejam ensinados pela boca e ministério de homens, o que é exatamente como esquivar-se da face de Deus que nos refulge em seu ensino. Ora, não foi por outra razão que outrora se ordenou aos fiéis a buscar a face de Deus no santuário, e isto se repete vezes sem conta na lei [1Cr 16.11; 2Cr 7.14; Sl 27.8; 100.2; 105.4], senão porque a doutrina da lei e as exortações proféticas lhes eram viva imagem de Deus, assim como afirma Paulo que em sua pregação refulgia a glória de Deus na face de Cristo [2Co 4.6]. Quão mais detestáveis são os apóstatas, que escancaram suas gargantas nas igrejas, tragando, exatamente como se retirassem ovelhas dos estábulos e as atirassem às fauces dos lobos. Deve-se, porém, ser mantido por nós o que já citamos de Paulo: que a Igreja não é edificada de outro modo senão pela pregação externa, nem os santos são sustentados por outro vínculo entre si, senão, enquanto aprendendo e avançando com um só sentimento, preservam a ordem prescrita por Deus à Igreja [Ef 4.12]. Principalmente para este fim, como eu já disse, outrora, sob a lei, aos fiéis foi determinado que afluíssem ao santuário, porque, enquanto Moisés fala da morada de Deus nele, ao mesmo tempo o chama o lugar do nome de Deus, onde Deus pôs a lembrança de seu nome [Ex 20.24], com que ensina abertamente não haver-lhe nenhum proveito à parte da doutrina da piedade. Não há dúvida de que, também pela mesma razão, com ingente amargura de espírito Davi se queixa de que, mercê da crueldade tirânica dos inimigos, está impedido do ingresso ao tabernáculo [Sl 83.2, 3]. A muitos parece quase que lamentação pueril, porquanto o carecer do átrio do templo viria a ser de bem pouca perda, também se perderia não muito de prazer, uma vez que à mão estariam outros deleites. Entretanto, ele deplora meramente esta inquietação, por ser abrasado por ansiedade e tristeza, e ser cruciado, e ser quase consumido, certamente porque aos fiéis nada é de mais importância do que esta administração do culto público, através da qual Deus gradativamente eleva os seus ao alto. Ora, é preciso notar também isto: que Deus sempre se revelou de tal modo, no espelho de sua doutrina, aos santos patriarcas, para que fosse seu conhecimento espiritual. Donde também o templo é não só chamado sua face [Sl 42.2], mas também, no afã de destruir toda superstição, o estrado de seus pés [1Cr 28.2; Sl 99.5; 132.7]. E este é aquele feliz concurso para com a unidade da fé [Ef 4.13], quando, desde o mais alto até o mais baixo, todos aspiram à Cabeça. Tudo quanto de templos os povos têm edificado a Deus, sob outro desígnio, isso lhe constituía pura profanação do culto, a qual, embora não com igual propósito, no entanto, até certo ponto, os judeus degeneraram; o que, da boca de Isaías, Estêvão lhes censura, a saber, que “Deus não habita em templos feitos por mãos” etc. [Is 66.1; At 7.48,49], porque só Deus, mediante sua Palavra, santifica templos para si para uso legítimo. E se algo tentamos temeriamente, sem seu endosso, de pronto ao mau princípio aderem ficções adventícias, com as quais o mal é propagado desmesuradamente. Não obstante, inconsideradamente agiu Xerxes quando, a conselho dos magos, queimou ou arrasou a todos os templos da Grécia, porque julgaria absurdo que os deuses fossem encerrados por paredes e telhados, a quem todas as coisas devem estar livremente manifestas. Como se, de fato, não esteja no poder de Deus descer, de certo modo, até nós, para estar perto de nós; contudo, não para mudar de lugar, nem confinar-nos a meios terrenos, antes, pelo contrário, mercê de certos veículos, elevar-nos acima, a sua glória celeste, que a tudo preenche em sua imensidade, enquanto, na verdade, aos céus supera em altura.

João Calvino