Total de visualizações de página

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O QUE CARACTERIZA A VERDADEIRA IGREJA NÃO É A SUCESSÃO APOSTÓLICA E FANTASIAS AFINS, TEMPLO E CERIMONIALISMO, MAS A PREGAÇÃO CORRETA DA PALAVRA E A OBEDIÊNCIA A SUA DOUTRINA E VERDADE

Portanto, é evidente que os romanistas não pretendem outra coisa, senão a que pretendiam antigamente os judeus, quando eram acusados pelo Senhor de cegueira, impiedade e idolatria. Pois, como aqueles se gabam vangloriosamente do templo, das cerimônias, dos sacerdócios, coisas essas que lhes pareciam de grande prova para certificar a Igreja, assim, em lugar da Igreja, certas representações externas são por eles interpostas as quais, freqüentemente, longe estão da Igreja e esta pode muito bem subsistir à parte delas. Portanto, nem devem eles ser refutados por nós com outro argumento além daquele com o qual Jeremias assacava contra aquela estulta confiança dos judeus, isto é: “Não vos fieis em palavras mentirosas, dizendo: Templo do Senhor, templo do Senhor, templo do Senhor” [Jr 7.4], quando, em parte alguma, o Senhor nada reconhece como seu, senão onde sua Palavra é ouvida e piedosamente observada. Assim sendo, embora a glória de Deus repousasse no santuário entre querubins [Ez 10.4], e ele havia prometido estabelecer ali seu trono para sempre, sua majestade afastou dali, deixando aquele lugar sem glória nem santidade alguma, porque os sacerdotes corromperam o culto divino com suas superstições. Pois se foi possível que Deus desamparasse o templo para convertê-lo em lugar profano, quando parecia haver sido dedicado para residência perpétua da divina majestade, estes não devem fazer-nos crer que Deus está ligado a pessoas, lugares ou cerimônias externas, de tal maneira que ele esteja como que coagido a permanecer entre aqueles que só mantêm o título ou aparência de Igreja. E esta é a tese que Paulo sustém na Epístola aos Romanos, do nono capítulo até o duodécimo. Pois perturbava intensamente as consciências fracas que, enquanto aparentavam ser o povo de Deus, os judeus não só rejeitavam a doutrina do evangelho, mas até a perseguiam. Portanto, depois que expôs a doutrina, Paulo remove esta dificuldade e nega que aqueles judeus, inimigos da verdade, sejam a Igreja, mesmo quando nada lhes faltasse que pudesse, de outra maneira, desejar-se quanto à forma exterior da Igreja. E não alega outra razão senão esta: que não abraçavam a Cristo. Ele fala ainda um tanto mais expressamente na Epístola aos Gálatas, onde, comparando Isaque com Ismael, diz que muitos tinham lugar na Igreja aos quais não pertence a herança, porquanto não foram gerados de mãe livre [Gl 4.22-26]. Do quê, também, desce à comparação da dupla Jerusalém, pois assim como a lei foi dada no Monte Sinai, e o evangelho proveio também de Jerusalém, assim muitos nascidos e criados em condição servil, contudo se gabam de ser filhos de Deus, quando eles próprios não passam de bastardos. Nós também, em contraposição, enquanto ouvimos do céu o que uma vez foi pronunciado: “Lança fora a escrava e seu filho” [Gn 21.10], firmados neste inviolável decreto, desprezamos veementemente suas jactâncias insípidas. Ora, se se orgulham de condição exterior, Israel também era circunciso; se contendem acerca de antigüidade, ele era o primogênito; entretanto o vemos ser excluído. Se se busca a causa, Paulo a declara: entre os filhos não foram contados senão aqueles que foram gerados da semente pura e legítima da doutrina [Rm 9.6-8]. Segundo este modo de arrazoar, ele nega que Deus se obrigou a sacerdotes ímpios, pelo fato de que firmara um pacto com seu pai Levi de que ele haveria de ser seu mensageiro ou intérprete. De fato, volta contra eles sua falsa vanglória com que costumavam levantar-se contra os profetas, isto é, que se deveria ter a dignidade do sacerdócio em singular apreço. Isto ele admite de bom grado, e com esta condição argumenta com eles, já que estava preparado a observar o pacto; quando, porém, não respondem em mutualidade, merecem ser repudiados. Ora, que valor tem essa sucessão, a menos que tenha também conjunta também a imitação e o teor constante, isto é, que os antecessores, tão logo se inteiram de que estão a degenerar sua origem, sejam privados de toda honra correspondente [Ml 2.1-9]. Salvo se, talvez, porque Caifás sucedeu a muitos sacerdotes pios (de fato, a série desde Arão até ele foi contínua), visto que foi digno do nome da Igreja aquela celerada sinagoga. Com efeito, nem nos impérios terrenos se poderia tolerar que a tirania de um Calígula, de um Nero, de um Heliogábalo, dentre outros, porque tenham sucedido aos Brutos, aos Cipiões e aos Camilos, se diga o verdadeiro estado da coisa pública. Especialmente, porém, no regime da Igreja, nada mais leviano do que, posta de parte a doutrina, colocar a sucessão nas próprias pessoas. Contudo, nem mesmo os santos doutores, que equivocadamente se nos opõe, tiveram jamais o intento de provar que, simplesmente por direito hereditário, há igreja ali onde os bispos se têm sucedido uns aos outros. Mas, embora nada estivessem além de controvérsia, desde o princípio até essa época, ter sido mudado na doutrina, assumiam o que fosse suficiente para aniquilar todos os erros novos: contrapor-se a sua doutrina constantemente e de unânime consenso mantida desde os próprios apóstolos. Portanto, não há por que continuem por mais tempo a embair sob o nome da Igreja, que nós honramos reverentemente, como convém. Quando, porém, se chega à definição da Igreja, não só, como se diz, a água chega a sua boca, mas se atolam em sua lama, visto que constituem asquerosa meretriz no lugar da sagrada esposa de Cristo! Para que tal substituição não nos engane, que nos venha à mente, além de outras advertências, também esta de Agostinho. Ora, falando acerca da Igreja diz ele: “Ela própria é tal que por vezes é obscurecida e como que engolfada por multidão de escândalos, por vezes se mostra sossegada e livre na tranqüilidade do tempo, por vezes é coberta e agitada por ondas de tribulações e de tentações.” E menciona exemplos dizendo que bem freqüentemente as mais firmes colunas da Igreja ou sofrem valentemente o desterro por causa da fé, ou se mantêm ocultas por todo o orbe.

João Calvino