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quarta-feira, 10 de outubro de 2018

CONSIDERAÇÕES EM REFUTAÇÃO DE OUTRAS OBJEÇÕES SUSCITADAS CONTRA A DOUTRINA DA REPROVAÇÃO E CONCLUSÃO FINAL DA MATÉRIA

Ora, pois, dirás, se é assim, mui pouca certeza oferecem as promessas do evangelho, as quais, em testificando da vontade de Deus, asseveram que ele quer aquilo que contrapõe a seu inviolável decreto. De modo algum, respondo, porque, por mais que as promessas de salvação sejam universais, entretanto, em nada discrepam da predestinação dos réprobos, desde que dirijamos a mente para sua eficácia. Sabemos que, afinal, as promessas nos são eficazes quando as recebemos em fé; quando, ao contrário, a fé é aniquilada, a promessa foi, ao mesmo tempo, abolida. Se essa é sua natureza, então vejamos se porventura estas duas teses discrepam entre si: diz se que Deus ordenou desde a eternidade a quem quer abraçar em amor, exerce sua ira contra quem quer, e que proclama a salvação a todos indiscriminadamente. Deveras digo que elas se harmonizam perfeitamente, pois, assim prometendo, outra coisa não pretende senão que sua misericórdia seja oferecida somente a todos os que a buscam e imploram, o que outros não fazem, a não ser aqueles a quem ilumina. Entretanto, Deus ilumina aqueles a quem predestinou para a salvação. A estes, afirmo, patenteia-se a veracidade certa e inconcussa das promessas, de modo que não se pode dizer que houve alguma discrepância entre a eterna eleição de Deus e o testemunho que oferece aos fiéis de sua graça. Mas, por que menciona todos? Na verdade, para que mais seguramente aquiesçam as consciências dos pios, enquanto compreendem que não há nenhuma diferença dos pecadores, desde que a fé esteja presente; os ímpios, porém, para que não aleguem faltar-lhes um refúgio em que se abriguem da servidão do pecado, visto que, por sua ingratidão, rejeitamo asilo a si oferecido. Portanto, uma vez que a uns e outros desses dois grupos seja oferecida pelo evangelho a misericórdia de Deus, é a fé, isto é, a iluminação de Deus, que estabelece distinção entre os pios e ímpios, de sorte que aqueles sintam a eficácia do evangelho, porém estes não conseguem daí nenhum fruto. A própria iluminação também tem como elemento regulador a eterna eleição de Deus. A lamentação de Cristo, que citam: “Jerusalém, Jerusalém, quantas vezes quis eu ajuntar teus pintainhos, e não quiseste” [Mt 23.37], não lhes propicia nenhum abono. Declaro que Cristo está falando não apenas em relação a sua pessoa humana, mas ainda a censurá-los porque em todos os séculos repudiaram sua graça. Mas, cabe-nos definir essa vontade de Deus da qual se trata aqui, pois não é obscuro quão zelosamente Deus envidou esforços para reter aquele povo e com quão grande obstinação, entregues a seus perversos desejos, desde os primeiros até os últimos, desdenharam esse congraçamento, mas daí não se segue que o conselho de Deus veio a ser anulado pela maldade dos homens. Objetam que nada é menos consentâneo à natureza de Deus do que nele haver uma dupla vontade, o que admito, desde que sejam intérpretes qualificados. Mas, por que não levam em conta as tantas passagens onde, revestindo-se de sentimentos humanos, Deus desce aquém de sua majestade? Diz ele que chamou um povo rebelde com braços estendidos [Is 65.2], que de manhã e de tarde tudo fez para conduzi-lo a si. Se porventura preferem aplicar a Deus todas estas coisas e não atentar para o teor figurativo da passagem, muitas contendas supérfluas emergirão, as quais podem ser solucionadas dizendo que a Deus, à guisa de semelhança, se atribui o que é próprio dos homens. Embora seja mais que suficiente a solução que adicionamos em outro lugar: embora, até onde vai nossa percepção, a vontade de Deus seja múltipla, contudo, em si ele não quer isto e aquilo; ao contrário, em razão de sua multiforme sabedoria, como Paulo a denomina [Ef 3.10], nossos sentidos se tornam atônitos, até que nos seja dado conhecer que ele, de uma forma admirável, quer o que agora parece ser contrário à sua vontade. Lançam mão também de outras cavilações, a saber, como Deus é o Pai de todos, é injusto que deserde a alguém, a não ser aquele que, por sua própria culpa, tenha antes merecido esta pena, como se de fato a liberalidade de Deus não se manifeste até para com porcos e cães! Pois se nos limitamos ao gênero humano, então me respondam por que Deus se vinculou a um só povo, para que fosse seu Pai, e por que também colheu daí um número tão diminuto, como se fosse dele a flor? Mas, sua paixão por vilipêndio impede esses motejadores de considerar que Deus de tal modo “faz vir seu sol sobre os bons e maus” [Mt 5.45], que a herança foi reservada aos poucos a quem, um dia, se haverá de dizer: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino” etc. [Mt 25.34]. Além disso, objetam que Deus não odeia absolutamente essas coisas que fez, o que, ainda que eu lhes conceda de bom grado, contudo, permanece o que estou ensinando: que os réprobos são abomináveis a Deus, e na verdade com mui boa razão, visto que, destituídos de seu Espírito, nada podem apresentar se não motivo de maldição. Acrescentam que não há distinção de judeu e gentio, e por isso a graça de Deus se propõe a todos indiscriminadamente, isto é, desde que admitam, como Paulo declara, que “Deus chama, segundo seu beneplácito, tanto entre os judeus, quanto entre os gentios” [Rm 9.24], de sorte que ele não é obrigado a ninguém. Deste modo também se dilui o que objetam de outra passagem: que “Deus encerrou tudo debaixo do pecado, para que tenha compaixão de todos” [Rm 11.32], isto é, porque quer que a salvação de todos os bem-aventurados seja atribuída à sua misericórdia, uma vez que este beneficio não é comum a todos. Com efeito, quando se apresentam muitas considerações de uma e outra parte, esta é nossa conclusão: tremer com Paulo ante a incomensurável profundidade, mesmo que línguas petulantes vociferem, não nos envergonhando desta sua exclamação: “Mas, ó homem, quem és tu que replicas a Deus?” [Rm 9.20]. Pois de fato Agostinho afirma que agem perversamente aqueles que medem a justiça divina com a medida da justiça humana.

João Calvino