Mas é preciso que nesta matéria nos guardemos bem de cair em dois erros. Visto que alguns fazem o homem colaborador com Deus, assim fazem a eleição ser retificada
por seu assentimento; conseqüentemente, segundo eles, a vontade do homem é
superior ao conselho de Deus. Como se de fato a Escritura ensinasse que apenas se nos
concede a possibilidade de crermos, e não que a própria fé é um dom de Deus! Outros,
embora não recebam a graça do Espírito Santo, entretanto, induzidos não sei de que
razão, fazem a eleição dependente dessa última, como se a eleição fosse dúbia, e
mesmo ineficaz, até que seja confirmada pela fé! Por certo não há dúvida de que o crer
se confirma quanto a nós. Vimos antes que também se manifesta o conselho secreto de
Deus que jazia oculto, contanto que com esta linguagem outra coisa não se entenda
senão ser comprovado o que era desconhecido, e como que selado com um selo.
Mas é falsa sua opinião de que a eleição só começa a ser eficaz quando abraçamos
o evangelho, e que daqui assume toda sua força e vigor.370 É verdade que, pelo
que a nós se refere, segundo se diz, recebemos do evangelho a certeza da mesma;
porque, se tentássemos penetrar no eterno decreto e ordenação de Deus, seríamos
tragados por esse abismo profundo. Quando, porém, Deus no-la manifesta, importa
subirmos mais alto, para que o efeito não suplante a causa. Pois quando a Escritura
nos ensina que fomos iluminados conforme Deus nos elegeu, que mais absurdo e
indigno que nossos olhos sejam ofuscados pelo fulgor desta luz, a tal ponto que se
recusem a atentar para eleição? Entrementes, tampouco nego que, para que sejamos
seguros de nossa salvação, o início deve provir da Palavra e nela deve estar contida
nossa confiança para que invoquemos a Deus por Pai. Ora, certos indivíduos, para
que se tornem mais seguros do conselho de Deus, que nos está próximo, na boca e
no coração [Dt 30.14], contrariamente anseiam poder pairar acima das nuvens. Portanto,
essa temeridade deve ser coibida pela sobriedade da fé, para que Deus nos
seja testemunha eficiente de sua graça oculta, que nos revela em sua Palavra; contanto
que este canal, pelo qual corre a água em grande profusão para que bebamos
dela, não impeça que a verdadeira fonte tenha a honra que lhe é devida.
João Calvino