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quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O ZELO DOS PURISTAS EXTREMADOS PROVÉM DE FALSA OPINIÃO DE PERFEIÇÃO PESSOAL, DE ESPÍRITO CONTENCIOSO, DE SENSO DEFEITUOSO DA DISCIPLINA ECLESIÁSTICA, DA NOÇÃO DEFICIENTE DA COMUNHÃO E UNIDADE DA IGREJA

Mas, se bem que, de inconsiderado zelo de justiça, esta tentação sucede por vezes até aos bons, contudo descobriremos que o excessivo rigorismo nasce mais do orgulho, da arrogância e de falsa opinião de santidade, que da verdadeira santidade e de seu verdadeiro zelo. Assim sendo, aqueles que são mais ousados que os demais a fomentar defecção da Igreja, e como que vanguardeiros de insígnias, estes, na maioria das vezes, nenhuma outra coisa têm senão que, pelo desprezo de todos, se ostentam ser melhores que os demais. Portanto, Agostinho fala bem e sabiamente: “Como”, diz ele, “a pia razão e medida da disciplina eclesiástica deve visar sobretudo ‘à unidade do Espírito no vínculo da paz’ [Ef 4.3], o que o Apóstolo preceitua se deva observar com suportar-nos mutuamente, e quando isto não é observado, o castigo remedial é não só supérfluo, mas até pernicioso, e por isso já nem remédio se convence ser. Esses filhos do mal que, não pela aversão às iniqüidades alheias, mas pelo zelo de suas contenções, afetam ou atrair todos, ou de fato dividir as turbas fracas, enredilhados na jactância de seu próprio nome, intumescidos de orgulho, ensandecidos de obstinação, insidiosos em calúnias, turbulentos em sedições; para que não se mostrem carecer da luz da verdade, estedem por diante a sombra de rígida severidade; e as coisas que nas Santas Escrituras, preservada a sinceridade do afeto e mantida a unidade da paz, foram preceituadas para, de mais moderado cuidado, se tornarem meios para corrigir as falhas dos irmãos, aplicam para o sacrilégio do cisma e a ocasião de exclusão.”11 Aos homens pios e cordatos, porém, Agostinho dá este conselho: “que corrijam compassivamente o que podem; o que não podem, tolerem pacientemente, e com amor, deplorem e lamentem, até que Deus ou emende e corrija, ou, na colheita, arranque as cizânias e joeire as palhas.”12 Com estas armas, todos os pios diligenciem por equipar-se para que, enquanto a si parecem extremados e animosos vindicadores da justiça, não se afastam do reino dos céus, que é o único reino da justiça. Ora, visto que Deus quis que a comunhão de sua Igreja seja cultivada nesta sociedade externa, quem, por aversão aos réprobos, quebra a senha desta sociedade, trilha um caminho no qual cair é o deslize da comunhão dos santos. Pensem em uma grande multidão haver muitos verdadeiramente santos e inocentes perante os olhos do Senhor, que à percepção lhes escapem. Pensem que, até mesmo dentre aqueles que parecem tomados de enfermidade, muitos há que, de modo algum, se comprazem ou lisonjeiam em seu vícios; ao contrário, vez a pós vez, despertados de sério temor do Senhor, a maior integridade aspiram. Pensem que não se deve passar juízo a respeito de um homem por um só ato, quando de mui grave queda caem, por vezes, os mais santos. Pensem que precisam de mais tempo para congraçar a Igreja, quer no ministério da Palavra, quer na participação dos mistérios sagrados, que todo esse poder possa evanescer pela culpa de uns ímpios. Considerem, finalmente, que, quando se trata de discernir se uma Igreja é ou não de Deus, o juízo de Deus deve ser preferido ao dos homens.

João Calvino