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sábado, 7 de julho de 2018

A NATUREZA REAL DO PECADO ORIGINAL


E, para que as coisas ditas acerca desta matéria não sejam incertas e obscuras,
definamos pecado original. Entretanto, nem tenho a intenção de perscrutar, uma a
uma, as definições que têm sido propostas pelos escritores. Ao contrário, oferecerei
apenas uma, definição esta que a mim me parece perfeitamente consistente com a
verdade. O pecado original representa, portanto, a depravação e corrupção hereditárias
de nossa natureza, difundidas por todas as partes da alma, que, em primeiro
lugar, nos fazem condenáveis à ira de Deus; em segundo lugar, também produzem
em nós aquelas obras que a Escritura chama de “obras da carne” [Gl 5.19]. E é
propriamente isto o que por Paulo, com bastante freqüência, designa apenas de
pecado. As obras que de fato daí resultam, quais são: adultérios, fornicações, furtos,
ódios, homicídios, glutonarias, Paulo chama, segundo esta maneira de ver, “frutos
do pecado” [Gl. 5.19-21], ainda que, como a cada passo nas Escrituras, sejam também
por ele referidas simplesmente pelo termo “pecados”.
Portanto, estas duas coisas devem ser consideradas distintamente. Isto é, em
primeiro lugar, que estamos a tal ponto corrompidos e depravados em todas as
partes de nossa natureza, que já por causa de apenas tal corrupção, somos, merecidamente, tidos como condenados e incriminados diante de Deus, a quem nada é
aceito senão a justiça, a inocência, a pureza. Nem é esta a imputação de um delito
alheio. Ora, o que se diz de nos tornarmos passíveis ao juízo de Deus através do
pecado de Adão, não se deve assim tomar como se portássemos a culpa de seu
delito, sendo nós próprios inculpáveis e imerecedores. Pelo contrário, visto que, por
sua transgressão, fomos todos engolfados na maldição, lemos que aquele nos fez
culposos. Todavia, sobre nós não caiu somente o castigo, mas, dele instilado, uma
contaminação reside em nós, à qual, de direito, se deve punição. Razão por que
Agostinho, embora para mostrar mais claramente que ele nos é transmitido por propagação, freqüentes vezes o chame pecado alheio, ao mesmo tempo, contudo, também afirma ser ele inerente a cada um. E mui eloqüentemente o atesta o próprio
Apóstolo que, por isso, a morte se propagou a todos, porque todos pecaram; isto é,
estão enredilhados no pecado original e tisnados de sua nódoa [Rm 5.12].
E por isso também as próprias crianças, enquanto trazem consigo sua condenação
desde o ventre materno, são tidas como culposas não por falta alheia, mas pela
falta de si próprias. Ora, embora ainda não tenham trazido à tona os frutos de sua
iniqüidade, no entanto têm encerrada dentro de si a semente. Com efeito, sua natureza
toda é uma como que sementeira de pecado. Por isso, não pode ela deixar de
ser odiosa e abominável a Deus. Do quê se segue que, com propriedade, esse estado
é considerado como pecado diante de Deus, pois não haveria incriminação sem a
culpabilidade.
Acode, em segundo lugar, esta outra consideração: que esta depravação jamais
cessa em nós; pelo contrário, produz continuamente novos frutos, a saber, essas
obras da carne que referimos antes, exatamente como uma fornalha acesa expele
chama e centelhas, ou uma fonte mana água sem parar. Por essa razão, aqueles que
definiram o pecado original como a falta de retidão original que devia subsistir em
nós, ainda que incluam nessa definição a plena acepção do conceito, não expressaram,
contudo, bastante significativamente sua força e energia. Ora, nossa natureza
não é apenas carente e vazia do bem; ao contrário, a tal ponto fértil e fecunda em
todas as coisas ruins, que não pode nunca deixar de estar produzindo o que é mau.
Aqueles que o declaram ser concupiscência, não fazem uso de termo de todo
impróprio se meramente se adicionasse, o que da maioria de modo algum se admite,
que tudo quanto há no homem, desde o intelecto até a vontade, desde a alma até a
carne, foi poluído e saturado por essa concupiscência. Ou, para expressar-se mais
sucintamente, o homem todo, de si mesmo, outra coisa não é senão concupiscência.

João Calvino