Por essa razão eu disse que, desde que Adão
se apartou da fonte da justiça, todas as partes da alma vieram a ser possuídas
pelo pecado. Pois não só o seduziu um desejo inferior; ao contrário, a nefanda
impiedade ocupou a própria cidadela da mente, e o orgulho penetrou ao mais
recôndito do coração, de sorte que é improcedente e estulto restringir a
corrupção que daí emanou apenas ao que chamam impulsos sensuais,
ou chamar “foco de fogo” que atrai, excita e arrasta o pecado somente a parte
que compreende a sensualidade.
Nisto Pedro Lombardo pôs à mostra crassa
ignorância, ou, seja, buscando e investigando a sede do pecado, afirma
que ela está na carne, o que, a seu ver, Paulo atesta, ainda que não de
forma estrita, mas porque o pecado se faz ainda patente na carne. Aliás,
é como se Paulo tivesse em mira apenas uma parcela da alma e não a natureza
toda, a qual se opõe à graça supernatural! E Paulo remove toda dúvida, ensinando
que a corrupção não reside apenas em uma parte; ao contrário, que nada há
incontaminado ou inafetado por sua mortífera peçonha. Ora, discorrendo a
respeito
da natureza corrupta, Paulo não só condena
os desordenados impulsos dos apetites, que se fazem explícitos, mas sobretudo insiste em que a mente
está entregue à cegueira e o coração, à depravação [Ef 4.17, 18]. E esse
terceiro capítulo da Epístola aos Romanos outra coisa não é senão
uma descrição do pecado original.
Isto se mostra mais claramente à luz da
renovação regeneracional. Ora, o termo espírito, que se contrapõe a velho homem e carne,
não denota simplesmente a graça pela qual é retificada a parte inferior
ou sensória da alma; pelo contrário, abrange a plena reforma de todas as
partes. E por isso Paulo prescreve não apenas que se reduzam a nada os
apetites vis, mas ainda que sejamos renovados no espírito de nosso
entendimento [Ef 4.23], assim como também, em outra passagem [Rm 12.2], insta
a que sejamos transformados em novidade da mente. Do quê se segue que aquela
parte em que refulge sobremaneira a excelência e nobreza da alma foi não só ferida,
mas até corrompida, a tal ponto que tem necessidade não apenas de ser curada,
mas também de revestir-se de natureza quase que nova.
Até onde o pecado domina, não só à mente, mas ainda
ao coração, veremos de imediato. Aqui tive o propósito de apenas sumariamente
abordar o fato de que o homem inteiro, da cabeça aos pés, foi, como por um
dilúvio, de tal modo assolado, que nenhuma parte ficou isenta de pecado, e em
conseqüência tudo quanto dele procede deve ser imputado ao pecado. Como Paulo
diz [Rm 8.6, 7]: todos os afetos ou cogitações da carne são inimizades contra
Deus; e por isso, morte.
João
Calvino