Que aqui ninguém vocifere dizendo que Deus
poderia ter acudido melhor à nossa salvação, se houvesse impedido a queda de
Adão, visto que essa objeção, em vista da curiosidade em extremo ousada que
envolve, não só deve ser abominada pelas mentes piedosas, como também
pertence ao mistério da predestinação, que se haverá de tratar mais adiante em
seu devido lugar. Portanto, lembremo-nos de que nossa ruína deve ser
imputada à depravação de nossa natureza, não à natureza em si,
em sua condição original, para que não lancemos a acusação contra o próprio
Deus, como sendo o autor dessa natureza.
É certamente verdadeiro que essa ferida mortal nos
é inerente à natureza, mas em muito avulta se porventura tenha provindo de
outra parte, ou se nela esteja empostada desde a origem. Salta, porém, à
vista que foi ela infligida através do pecado.
Portanto não há por que nos queixarmos, a não ser
de nós mesmos, o que a Escritura diligentemente tem assinalado, pois diz
o Eclesiastes: “Isto sei, que Deus fez o homem reto, mas eles próprios
buscaram para si muitas invenções” [Ec 7.29].
É óbvio que somente ao homem se deve imputar a própria
ruína, uma vez que, pela benignidade de Deus, havendo obtido a retidão, por
seu desvario ele caiu na fatuidade.
João
Calvino