Entretanto, o que disse anteriormente
no início deste capítulo, sou compelido a repetir aqui, de novo: que todo
aquele que se vê profundamente acabrunhado e consternado pela consciência de
sua miséria, pobreza, nudez, ignomínia, tem assim avançado extraordinariamente
no conhecimento de si próprio. Ora, não há perigo de que o homem prive a si
mesmo excessivamente, desde que aprenda que se deve recobrar em Deus o que em
si mesmo falta. Com efeito, na verdade nem pode o homem a si presumir um
tantinho de nada além de seu direito, sem que não só se perca em vã confiança
pessoal, mas ainda, transferindo a si a honra divina, se faça réu de monstruoso
sacrilégio. Evidentemente, sempre que nos vem à mente essa ânsia de apetecer
alguma coisa que nos pertença e não a Deus, temos de compreender que tal
pensamento nos é inspirado pelo que induziu nossos primeiros pais a quererem
ser semelhantes a Deus, conhecendo o bem e o mal [Gn 15]. Caso seja a palavra
do Diabo que exalta o homem em si mesmo, não lhe demos lugar, a não ser que
queiramos receber conselho do inimigo. Sem dúvida é grato possuir tanto de
poder próprio que hajas de confiar em ti mesmo. Mas, para que não sejamos
seduzidos a esta vã confiança pessoal, que sejamos atemorizados por tantas
declarações graves da Escriturapelas quais somos severamente consternados, a
saber: “Maldito é aquele que confia no homem e põe a carne por seu braço” [Jr
17.5]; igualmente: “Deus não se deleita na força do cavalo e não lhe comprazem
as pernas do homem, mas se afeiçoa nos que o temem, nos que se entregam à sua
bondade” [Sl 147.10, 11]; também: “É ele que dá alento ao cansado e ao sem
forças aumenta o vigor, que faz com que os jovens se fatiguem e se abatam, os
moços de exaustão tombem, porém os que só nele esperam renovem suas forças” [Is
40.29-31]. Todas estas referências conduzem a isto: que não nos apoiemos na
convicção de nossa própria força, por mínima que seja tal convicção, se
queremos que Deus nos seja propício, o qual resiste aos soberbos, porém dá
graça aos humildes [Tg 4.6; 1Pe 5.5; Pv 3.34]. Então, em seguida venham à
memória estas promessas: “Derramarei água sobre o solo sedento,e rios sobre a
terra seca” [Is 44.3]; de igual modo: “Vinde às águas todos os que tendes sede”
[Is 55.1], as quais atestam que, para receber as bênçãos de Deus, a ninguém se
admite, senão os que se consomem sob o senso de sua pobreza. Com isso não se
pretere promessa tal como esta de Isaías: “O sol já não ser-te-á para iluminar
durante o dia, nem a lua para iluminar durante a noite; ao contrário, o Senhor
ser-te-á por luz sempiterna” [Is 60.19]. Certamente, o Senhor não subtrai de
seus servos o fulgor do sol ou da lua; mas, visto que somente ele quer ser
glorioso neles, afasta para longe deles a confiança mesmo posta naquelas coisas
que em sua opinião são mui excelentes.
João
Calvino