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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A ELEIÇÃO DE JACÓ NÃO VISA APENAS A BÊNÇÃOS TEMPORAIS, É EXPRESSÃO UNICAMENTE DA MISERICÓRDIA DE DEUS, QUE TAMBÉM ELEGE DO POVO UMA PORÇÃO

E se alguém me importunar alegando que destes benefícios inferiores e diminutos não há como concluir-se acerca da suma da vida futura, já que aquele que foi elevado à honra da primogenitura, por isso se deva reputar adotado à herança do céu (ora, são muitos os que de fato não poupam a Paulo, como se, ao citar estes testemunhos,de modo estranho torceu a Escritura), respondo, como já fiz antes, que o Apóstolo não errou por irreflexão, e tampouco abusou deliberadamente dos testemunhos da Escritura. Via ele, porém, o que esses não conseguem visualizar, a saber, que Deus quis declarar a Jacó com um símbolo terreno a eleição espiritual, a qual, de outra maneira, jazia oculta junto a seu tribunal inacessível. Ora, a não ser que atribuamos sua primogenitura a ele concedida ao século futuro, fútil haverá de ter sido a ridícula aparência de bênção, da qual nada haverá de ter-lhe advindo senão infindas provações, incômodos, triste exílio e muitas tristezas e as agruras das preocupações. Portanto, como visse Paulo, além de dúvida, que, mediante a bênção externa Deus atestava aquela espiritual e que de modo nenhum caduca, bênção que a seu servo havia preparado em seu reino, não hesitou em buscar daquela argumento para comprovar a esta. Isso também deve ter-se na lembrança: que o penhor de um domicílio celestial foi confrontado com a terra de Canaã, de sorte que não se deva, de modo algum, duvidar que Jacó foi com os anjos enxertado no corpo de Cristo, para que fosse participante da mesma vida. Logo, Jacó é eleito e Esaú é repudiado; e são diferenciados pela predestinação divina aqueles entre os quais não existia diferença alguma quanto aos méritos. Se porventura indagas a causa, o Apóstolo apresenta esta: “Porque foi dito a Moisés: Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e terei compaixão de quem quiser ter compaixão” [Ex 33.19; Rm 9.15]. E que quer isto dizer, pergunto? Aliás, o Senhor afirma de forma mui clara que ele não tem razão alguma de usar de benevolência para com os homens com base neles; ao contrário, ele o faz unicamente com base em sua misericórdia [Rm 9.16], e por isso a salvação dos seus é obra sua. Quando Deus estatui tua salvação baseado unicamente nele mesmo, por que haverás de olhar para ti mesmo? Quando o Senhor te prescreve sua mera misericórdia, por que haverás de recorrer a teus próprios méritos? Quando Deus concentra tua cogitação em sua compaixão, por que haverás de deter-te em contemplação de tuas obras à parte dele? Portanto, é necessário volver àquele reduzido número o qual Paulo em outro lugar escreve ter sido por Deus conhecido de antemão [Rm 11.2], tal conhecimento não é como esses imaginam, que ele prevê todas as coisas permanecendo ocioso e sem preocupar-se com nada, mas no sentido em que esta expressão é muitas tomada na Escritura. Ora, na verdade, quando em Lucas Pedro diz que Cristo fora entregue à morte pelo determinado conselho e presciência de Deus [At 2.23], não está insinuando um Deus meramente espectador, ao contrário, o Autor de nossa salvação. Assim também o mesmo Pedro, dizendo que os fiéis, a quem escreve, foram eleitos segundo a presciência de Deus, exprime precisamente essa predestinação secreta pela qual Deus selou para si como filhos aqueles aos quais assim quis. E a palavra propósito, a qual associa à guisa de sinônimo, uma vez que, exprimindo por toda parte, em linguagem comum, como determinação fixa, não ensina que Deus sai de si mesmo em busca incerta de nossa salvação. Neste sentido ele diz, no mesmo capítulo, que Cristo foi o Cordeiro conhecido antes da criação do mundo [1Pe 1.19, 20]. Pois o que há de mais absurdo ou mais fútil que haver Deus se posicionado no alto a contemplar para ver de onde salvação haveria de vir ao gênero humano? Portanto, para Paulo, o povo conhecido de antemão equivale a diminuta porção dele misturada à grande massa, a qual arvora falsamente o nome de Deus. Também em outro lugar, para reprimir a jactância daqueles que, apenas cobertos de máscara, diante do mundo arrogam para si as primeiras posições entre os piedosos, Paulo diz que Deus conhece os que são seus [2Tm 2.19]. Enfim, com esse termo, Paulo nos aponta dois povos: um, composto de toda a descendência de Abraão; o outro, à parte deste e que, recôndito sob os olhos de Deus, jaz oculto à vista dos homens. Não há dúvida de que ele tomou isto de Moisés, o qual afirma que Deus é misericordioso para com aqueles a quem assim quis proceder [Ex 33.19], porquanto a referência foi acerca do povo eleito, cuja condição era igual na aparência. Exatamente como se estivesse dizendo que não obstante ser a adoção comum e geral, contudo, ele reservara para si uma graça à parte, como um tesouro singular, para aqueles a quem tivesse por bem comunicá-la. E querendo mostrar como Senhor absoluto e que livremente poderia dispensar isto, terminantemente nega que haja de ser misericordioso para com um mais que para com outro, senão porque assim lhe foi do agrado, porquanto, quando a misericórdia ocorre ao que a busca, ainda que não sofra repulsa, contudo, ou antecipa ele mesmo, ou em parte adquire para si o favor, o louvor do qual Deus reivindica para si.

João Calvino