Mas alguns dirão que Ambrósio, Orígenes, Jerônimo defenderam a tese de que
Deus dispensa sua graça entre os homens conforme haja previsto que cada um viria
a fazer dela bom uso. Afirmam que também Agostinho, por algum tempo, foi
deste parecer. Como, porém, houvesse avançado mais no conhecimento da Escritura,
não só se retratou dele como evidentemente falso, mas inclusive o refutou
firmemente. Com efeito, após a retratação, pressionando os pelagianos por persistirem
nesse erro, diz ele: “Quem não admire haver o Apóstolo escapado desta
noção tão aguda? Ora, pois, como prescrevera uma cousa estupenda acerca daqueles
dois, Esaú e Jacó, ainda não nascidos, e depois lança a si mesmo a pergunta: E
então? Porventura há iniqüidade em Deus? [Rm 9.14], esse era o lugar para responder
que Deus previra os méritos de um e do outro. Contudo, não diz tal coisa; ao
contrário, busca refúgio nos juízos e na misericórdia de Deus.” E, em outro lugar,
como excluísse todos os méritos antes da eleição: “Aqui, de fato”, diz ele, “vazio se
faz o fútil arrazoado daqueles que defendem a presciência de Deus contra sua graça
e nos dizem que foram eleitos antes da formação do mundo porque Deus anteviu
que haveríamos de ser bons, não que ele mesmo nos fizesse bons. Não é isso que ele
diz: ‘Não fostes vós que me escolhestes; antes, eu vos escolhi’ [Jo 15.16]. Ora, se
nos houvesse escolhido porque sabia que seríamos bons, também teria ao mesmo
tempo previsto que o haveríamos de escolher.” Valha o testemunho de Agostinho entre aqueles que, de bom grado, aquiescem à
autoridade dos pais. Visto que Agostinho não consente em ser dissociado dos demais,
contudo mostra, mediante claros testemunhos, ser falsa a calúnia dos pelagianos
de que ele mantinha aquela opinião. Ora, ele cita de Ambrósio: “Cristo chama
àqueles em favor de quem ele quer igualmente ter compaixão.” E: “Caso ele o quisesse,
dos não-devotos teria convertido em devotos, porém Deus chama a quem
assim digna e faz religioso a quem assim queira fazer.” Se alguém quisesse encher
um volume com os ditos notáveis de Agostinho no tocante a esta matéria, me seria
fácil mostrar ao leitor que só de suas palavras que não tenho necessidade de usar
outras palavras além das dele; porém, não pretendo molestá-los com prolixidade.
Mas imaginemos que eles não falassem isto. Então atentemos para a própria
matéria. O Apóstolo suscitou uma bem difícil, a saber, porventura Deus agiria com
justiça se sua graça contemplasse certas pessoas? Questão esta da qual Paulo poderia
desvencilhar-se com uma palavra, caso houvesse proposto levar em consideração
as obras humanas. Portanto, por que ele não age assim, senão que, antes, dá
seguimento a uma tese que se envolve na mesma dificuldade? Por quê, senão porque
ele não deve agir assim? Pois o Espírito Santo, por cuja boca falava, não laborava
no hábito do esquecimento. Logo, sem quaisquer rodeios,responde: Portanto,
Deus mostra favor a seus eleitos, porque assim o queira; por isso tem compaixão
deles, porque assim o queira. Ora, o oráculo: “Terei misericórdia de quem eu tiver
misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer” [Ex 33.19], vale
exatamente como se estivesse dizendo: Deus não é movido à misericórdia por outra
razão, senão porque ele quer ser misericordioso. Portanto, esta afirmação de Agostinho permanece verdadeira: “A graça de Deus não acha ninguém a quem deva
eleger, mas faz com que os homens sejam aptos a ser eleitos.”
João Calvino