Se bem que já está suficientemente claro que Deus, por seu desígnio secreto
escolhe livremente àqueles a quem quer, rejeitando a outros, contudo, sua eleição
gratuita ainda não foi exposta, senão pela metade, até que se haja vindo às pessoas
individualmente, às quais Deus não só oferece a salvação, mas de tal forma a confere,
que a certeza de conseguir seu feito não fica suspensa nem duvidosa. Estes são
contados naquela semente singular de que Paulo faz menção [Rm 9.8; Gl 3.16]. Ora, ainda que a adoção fosse depositada na mão de Abraão, no entanto, visto que muitos
dentre sua prole foram podados como membros apodrecidos, para que a eleição
fosse eficaz e verdadeiramente estável, é necessário que ascendesse ao Cabeça, em
quem o Pai celestial ligou entre si a seus eleitos e a si os vinculou por nexo insolúvel.
Desta maneira, de fato na adoção da descendência de Abraão refulgiu o favor
liberal de Deus, que a outros negou; todavia, nos membros de Cristo o poder da
graça se afigura muito mais excelente, porque, enxertados em seu Cabeça, nunca
apostatam da salvação. Portanto, da passagem de Malaquias que citei há pouco,
Paulo arrazoa pertinentemente, dizendo que, onde o pacto da vida eterna se interpõe,
Deus chama a si determinado povo, tem contudo uma especial maneira de
eleger uma parte do mesmo, de sorte que nem todos são eleitos pela mesma graça. O
que se diz: “Amei a Jacó” [Ml 1.2], refere-se a toda a descendência do patriarca, a
qual o Profeta aí contrasta com os descendentes de Esaú. No entanto, isto não impede
que na pessoa de um só homem nos seja posto exemplo de eleição que não pode
afluir sem que atinja sua meta. Paulo que estes são chamados “as relíquias”não sem
motivo [Is 10.22; Rm 9.27; 11.5], porque a experiência mostra que da grande massa
a maioria se esvai e se vai, de sorte que com muita freqüência só permanece uma
porção diminuta.
Se alguém pergunta qual é a causa de que a eleição geral do povo nem sempre é
firme e eficiente, a resposta é fácil, visto que o Espírito de regeneração não dota
imediatamente com o poder do qual perseverem no pacto até o fim aqueles com
quem Deus estabelece esse pacto. Mas, antes, a conclamação externa, sem a eficiência
interior da graça, que seria bastante poderosa para retê-los firmes, é um como
que elemento intermédio entre a rejeição do gênero humano e a eleição do diminuto
número dos piedosos. O povo de Israel foi chamado herança de Deus [Dt 32.9; 1Rs
8.51; Sl 28.9; 33.12], de cujo meio, entretanto, muitos foram estranhos. Mas, visto
que, não sem razão, Deus prometera haver de ser seu Pai e Redentor, atenta para
este seu gracioso favor antes que para a pérfida defecção de muitos, através dos
quais, todavia, sua verdade não foi abolida, porquanto, onde conservou para si algum
resíduo, se fez evidente que sua vocação é “sem arrependimento” [Rm 11.29],
pois o fato de que Deus haja formado sua Igreja dos descendentes de Abraão em vez
das nações pagãs, prova que teve em conta seu pacto, o qual, violado pela maioria,
o limitou a poucos, a fim de que não fosse de todo anulado e sem valor. Finalmente, essa adoção geral da semente de Abraão foi uma como que imagem
visível do benefício maior de que Deus se dignou a alguns dentre muitos. Esta é a
razão por que Paulo tão cuidadosamente distingue os filhos de Abraão segundo a carne de seus filhos espirituais, que foram chamados conforme o exemplo de Isaque
[Rm 9.7, 8; Gl 4.28]. Não que ser simplesmente filho de Abraão fosse coisa inútil e
infrutífera, o que não se pode dizer sem agravo do pacto, mas porque o conselho
imutável de Deus, pelo qual predestinou para si aqueles a quem quis, afinal foi de si
eficaz para a salvação só a estes últimos. Recomendo, porém, aos leitores que não
se imponham um juízo preconcebido em relação a qualquer das duas partes, até que,
apresentados os textos da Escritura, se faça evidente o que se deve sentir na matéria.
Portanto, estamos afirmando o que a Escritura mostra claramente: que designou
de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer
que se salvem, e também àqueles que quer que se percam. Este desígnio, no que
respeita aos eleitos, afirmamos haver-se fundado em sua graciosa misericórdia, sem
qualquer consideração da dignidade humana; aqueles, porém, aos quais destina à
condenação, a estes de fato por seu justo e irrepreensível juízo, ainda que incompreensível,
lhes embarga o acesso à vida. Da mesma forma ensinamos que a vocação
dos eleitos é um testemunho de sua eleição; em seguida, a justificação é outro
sinal de seu modo de manifestar-se, até que se chega à glória, na qual está posta sua
consumação. Mas, da mesma forma que pela vocação e pela justificação o Senhor
assinala seus eleitos, assim também ao excluir os réprobos, seja do conhecimento
de seu nome, seja da santificação de seu Espírito, mostra com esses sinais qual será
seu fim e que juízo lhes está preparado. Passarei aqui em silêncio muitas fantasias
que, no intento de subverter a predestinação, os homens estultos imaginaram. Pois
não necessitam de refutação as coisas que, tão logo sejam proferidas, elas próprias
sobejamente acusam sua falsidade. Deter-me-ei apenas nessas coisas acerca das
quais se debate entre os doutos, ou que possam trazer dificuldade aos simples, ou
que, temerariamente, a impiedade se interpõe a estigmatizar a justiça de Deus.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32