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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A ELEIÇÃO EFETIVA EM RELAÇÃO AOS INDIVÍDUOS OU PESSOAS; SÍNTESE DA MATÉRIA EM PAUTA

Se bem que já está suficientemente claro que Deus, por seu desígnio secreto escolhe livremente àqueles a quem quer, rejeitando a outros, contudo, sua eleição gratuita ainda não foi exposta, senão pela metade, até que se haja vindo às pessoas individualmente, às quais Deus não só oferece a salvação, mas de tal forma a confere, que a certeza de conseguir seu feito não fica suspensa nem duvidosa. Estes são contados naquela semente singular de que Paulo faz menção [Rm 9.8; Gl 3.16]. Ora, ainda que a adoção fosse depositada na mão de Abraão, no entanto, visto que muitos dentre sua prole foram podados como membros apodrecidos, para que a eleição fosse eficaz e verdadeiramente estável, é necessário que ascendesse ao Cabeça, em quem o Pai celestial ligou entre si a seus eleitos e a si os vinculou por nexo insolúvel. Desta maneira, de fato na adoção da descendência de Abraão refulgiu o favor liberal de Deus, que a outros negou; todavia, nos membros de Cristo o poder da graça se afigura muito mais excelente, porque, enxertados em seu Cabeça, nunca apostatam da salvação. Portanto, da passagem de Malaquias que citei há pouco, Paulo arrazoa pertinentemente, dizendo que, onde o pacto da vida eterna se interpõe, Deus chama a si determinado povo, tem contudo uma especial maneira de eleger uma parte do mesmo, de sorte que nem todos são eleitos pela mesma graça. O que se diz: “Amei a Jacó” [Ml 1.2], refere-se a toda a descendência do patriarca, a qual o Profeta aí contrasta com os descendentes de Esaú. No entanto, isto não impede que na pessoa de um só homem nos seja posto exemplo de eleição que não pode afluir sem que atinja sua meta. Paulo que estes são chamados “as relíquias”não sem motivo [Is 10.22; Rm 9.27; 11.5], porque a experiência mostra que da grande massa a maioria se esvai e se vai, de sorte que com muita freqüência só permanece uma porção diminuta. Se alguém pergunta qual é a causa de que a eleição geral do povo nem sempre é firme e eficiente, a resposta é fácil, visto que o Espírito de regeneração não dota imediatamente com o poder do qual perseverem no pacto até o fim aqueles com quem Deus estabelece esse pacto. Mas, antes, a conclamação externa, sem a eficiência interior da graça, que seria bastante poderosa para retê-los firmes, é um como que elemento intermédio entre a rejeição do gênero humano e a eleição do diminuto número dos piedosos. O povo de Israel foi chamado herança de Deus [Dt 32.9; 1Rs 8.51; Sl 28.9; 33.12], de cujo meio, entretanto, muitos foram estranhos. Mas, visto que, não sem razão, Deus prometera haver de ser seu Pai e Redentor, atenta para este seu gracioso favor antes que para a pérfida defecção de muitos, através dos quais, todavia, sua verdade não foi abolida, porquanto, onde conservou para si algum resíduo, se fez evidente que sua vocação é “sem arrependimento” [Rm 11.29], pois o fato de que Deus haja formado sua Igreja dos descendentes de Abraão em vez das nações pagãs, prova que teve em conta seu pacto, o qual, violado pela maioria, o limitou a poucos, a fim de que não fosse de todo anulado e sem valor. Finalmente, essa adoção geral da semente de Abraão foi uma como que imagem visível do benefício maior de que Deus se dignou a alguns dentre muitos. Esta é a razão por que Paulo tão cuidadosamente distingue os filhos de Abraão segundo a carne de seus filhos espirituais, que foram chamados conforme o exemplo de Isaque [Rm 9.7, 8; Gl 4.28]. Não que ser simplesmente filho de Abraão fosse coisa inútil e infrutífera, o que não se pode dizer sem agravo do pacto, mas porque o conselho imutável de Deus, pelo qual predestinou para si aqueles a quem quis, afinal foi de si eficaz para a salvação só a estes últimos. Recomendo, porém, aos leitores que não se imponham um juízo preconcebido em relação a qualquer das duas partes, até que, apresentados os textos da Escritura, se faça evidente o que se deve sentir na matéria. Portanto, estamos afirmando o que a Escritura mostra claramente: que designou de uma vez para sempre, em seu eterno e imutável desígnio, àqueles que ele quer que se salvem, e também àqueles que quer que se percam. Este desígnio, no que respeita aos eleitos, afirmamos haver-se fundado em sua graciosa misericórdia, sem qualquer consideração da dignidade humana; aqueles, porém, aos quais destina à condenação, a estes de fato por seu justo e irrepreensível juízo, ainda que incompreensível, lhes embarga o acesso à vida. Da mesma forma ensinamos que a vocação dos eleitos é um testemunho de sua eleição; em seguida, a justificação é outro sinal de seu modo de manifestar-se, até que se chega à glória, na qual está posta sua consumação. Mas, da mesma forma que pela vocação e pela justificação o Senhor assinala seus eleitos, assim também ao excluir os réprobos, seja do conhecimento de seu nome, seja da santificação de seu Espírito, mostra com esses sinais qual será seu fim e que juízo lhes está preparado. Passarei aqui em silêncio muitas fantasias que, no intento de subverter a predestinação, os homens estultos imaginaram. Pois não necessitam de refutação as coisas que, tão logo sejam proferidas, elas próprias sobejamente acusam sua falsidade. Deter-me-ei apenas nessas coisas acerca das quais se debate entre os doutos, ou que possam trazer dificuldade aos simples, ou que, temerariamente, a impiedade se interpõe a estigmatizar a justiça de Deus.

João Calvino