IMPROCEDÊNCIA DA TESE DAQUELES QUE SUBORDINAM A ELEIÇÃO À PRESCIÊNCIA
DE MÉRITOS
Todas estas coisas que expusemos não são destituídas de controvérsia junto a muitos,
especialmente a eleição gratuita dos fiés, a qual, no entanto, não pode ser abalada.
Pois geralmente pensam que Deus, conforme prevê que serão os méritos de cada
um, assim faz distinção entre os homens. Logo, aqueles a quem preconhece que não
serão indignos de sua graça, a esses adota em lugar de filhos; aqueles dos quais
discerne que se inclinarão para e preferirão sua maldade e impiedade, a esses os
devota à condenação da morte. E assim, interpondo o véu da presciência, não só
obscurecem a eleição, mas inclusive imaginam sua origem como sendo de outra
procedência. Esta opinião generalizadamente recebida não provém da plebe, pois
em todos os séculos ela tem tido patronos renomados, o que confesso francamente
que, para que alguém não conclua que ao citar seus nomes já tenha conseguido
grande vantagem contra a verdade; porque a verdade de Deus é tão certa no que
tange a esta matéria, que não pode derribada; e tão clara, que não pode ser obscurecida
por qualquer autoridade humana.
Outros, porém, nem tão versados na Escritura, nem tão dignos de qualquer estima,
laceram a sã doutrina com improbidade demasiado grande para que sua petulância
seja tolerável. Acusam a Deus de que, conforme sua vontade, elege a uns e
deixa a outros. Mas, se o próprio fato é coisa notória, que proveito esperam obter
em demandar contra Deus? Não estamos ensinando nada que não tenha sido comprovado
pela experiência, a saber, que Deus foi sempre livre em legar sua graça a
quem ele o quer. Não indagarei qual foi a causa que levou a posteridade de Abraão
a ser preferida, senão do privilégio cuja causa não se acha fora de Deus. Respondam
qual é a causa de serem homens e não bois ou asnos. Quando na mão de Deus estava
fazê-los cães, os formou à sua própria imagem. Porventura admitirão eles que animais
brutos discutem com Deus acerca de sua sorte, como se a diferença fosse
injusta? Certamente que em nada é mais justo do que possuírem eles um privilégio
que não obtivera de nenhum mérito pessoal, ou, seja, o fato de Deus distribuir seus
benefícios variadamente, segundo a medida de seu juízo!
Se descendem das pessoas, nas quais a desigualdade lhes parece odiosa, pelo
menos deveriam tremer ante a consideração do exemplo de Cristo, e não tão petulantemente
acerca de tão profundo mistério. Ele aqui é um homem mortal concebido
da semente de Davi. De que virtudes dirão haver ele merecido de antemão que,
no próprio ventre se fizesse o Cabeça do anjos, o Filho Unigênito de Deus, a imagem
e glória do Pai, a luz, a justiça, a salvação do mundo? A isto sabiamente atenta
Agostinho: que no próprio Cabeça da Igreja está o mais límpido espelho da eleição
gratuita, para que não nos espantemos quando virmos o que se opera em seus membros,
nem que foi feito Filho de Deus por viver justamente, mas, antes, foi graciosamente
coroado de tão grande honra, para que, depois, fizesse a outros participantes
de suas mercês. Se aqui alguém indagar por que outros não são o que ele é, ou por
que todos nós estamos separados dele por tão longa distância? Porque todos nós
somos corruptos e ele é a própria pureza, tal pessoa estará a manifestar, a um só
tempo, não só seu erro, como também sua impudência. Pois se persistem em querer
arrebatar de Deus o livre direito de eleger e de reprovar, então que subtraiam também,
ao mesmo tempo, o que foi dado a Cristo.
Vale a pena ter em conta agora o que a Escritura proclama a respeito de cada um.
Quando ela ensina que fomos eleitos em Cristo antes da criação do mundo [Ef 1.4],
Paulo elimina toda consideração de nossa dignidade real e pessoal, pois é exatamente
como se estivesse dizendo que, porquanto em toda a semente de Adão o Pai
celestial nada achava digno de sua eleição, ele volveu os olhos para seu Cristo, para
que, como que de seu corpo elegesse como seus membros àqueles a quem haveria
de tomar como parte de vida. Portanto, valha entre os fiéis esta consideração: nós
fomos adotados em Cristo para a herança celestial, já que em nós mesmos não éramos
capazes de tão grande excelência. Isto também ele expressa ainda em outro
lugar, quando exorta os colossenses à ação de graças, visto que se tornaram divinamente
idôneos para que pudessem compartilhar da herança dos santos [Cl 1.12]. Se
a eleição precede a esta graça de Deus a fim de que nos tornemos idôneos para a
obtenção da glória da vida futura, o que o próprio Deus achará em nós com que se
sinta movido a nos eleger? Ele exprimirá ainda mais expressamente o que quer
dizer em outra afirmação. “como também nos elegeu” diz Paulo, “antes da fundação
do mundo, segundo o beneplácito de sua vontade, para que fôssemos santos e
imaculados e irrepreensíveis diante dele” [Ef 1.4, 5; Cl 1.22], onde contrapõe aos
nossos méritos, quaisquer que sejam, o beneplácito de Deus.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32