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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

A UNIVERSALIDADE DO CONVITE DIVINO À SALVAÇÃO NÃO IMPUGNA O PARTICULARISMO DA ELEIÇÃO

Há quem objete dizendo que Deus seria contrário a si mesmo se a todos, universalmente, convide a si, porém admita a poucos. Sendo assim, a universalidade das promessas, segundo eles, anula a distinção da graça especial; e nesse mesmo diapasão falam certos homens moderados, não tanto no afã de sufocar a verdade, quanto a que sejam afastadas questões espinhosas e assim freiem a curiosidade de muitos. Louvável empenho, porém um desígnio que de modo algum se pode aprovar, porquanto seu subterfúgio jamais pode ser escusável. Quanto, porém, desses, aos que insultam mais impudentemente, na verdade sua cavilação é demasiado pútrida ou o erro demasiado vergonhoso. Já expliquei em outro lugar como a Escritura concilia estas duas coisas, a saber, mediante a pregação exterior, são todos chamados ao arrependimento e à fé, entretanto, nem a todos é dado o espírito de arrependimento e fé, e logo adiante se haverá de repetir algo mais. Agora nego-lhes o que defendem, visto ser falso de dois modos: primeiro, que Aquele que ameaça que, enquanto faz chover sobre uma cidade, haverá sequidão sobre outra [Am 4.7], que em outro lugar denuncia uma fome de ensino[Am 8.11], não se obriga por uma lei fixa para que chame a todos igualmente; e, segundo, Aquele que, vedando a Paulo de pregar a Palavra na Ásia, e ao mesmo desviando-o da Bitínia, o impele à Macedônia [At 16.6-10], demonstra ser direito seu distribuir este tesouro àqueles a quem bem lhe pareceu. Entretanto, mediante Isaías mostra mais expressamente como ele destina as promessas de salvação especificamente aos eleitos, pois apenas a respeito deles, mas não de todo o gênero humano indiferentemente, proclama que serão seus discípulos [Is 8.16]. Do quê se faz claro que os que querem que a doutrina de vida se proponha a todos, para que todos aproveitem dela eficazmente, se enganam sobremaneira, visto que ela só se propõe aos filhos da Igreja.
Por ora, que isto seja suficiente: ainda que a voz do evangelho se dirija a todos em geral, no entanto, o dom da fé é algo raro. Isaías assinala a causa: que o braço de Deus não se manifesta a todos[Is 53.1]. Se ele dissesse que o evangelho é maligna e perversamente desprezado porque muitos se recusam pertinazmente a ouvi-lo, talvez este pretexto tivesse força acerca de uma vocação universal. Com efeito, a intenção do Profeta não é atenuar a culpa dos homens, quando ensina que a fonte de sua cegueira é o fato de Deus não se dignar manifestar-lhes seu braço; somente adverte que, como a fé é um dom singular, em vão são os ouvidos verberados pelo ensino exterior. Eu, porém, gostaria de saber destes doutores se porventura Deus nos faz seus filhos só pela pregação, ou também pela fé? Na verdade, quando se diz no primeiro capítulo de João, “Todos quantos crêem no Unigênito Filho de Deus, eles mesmos são também feitos filhos de Deus” [Jo 1.12], aí não se opõe um aglomerado confuso, mas se confere aos fiéis uma categoria especial, “que foram nascidos não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem” [Jo 1.13]. Mas se replicam que há consenso mútuo da fé com a Palavra, respondo que é verdade quando há fé. Entretanto, não há coisa nova nem nunca vista que a semente caia entre espinhos [Mt 13.7], ou em lugares pedregosos [Mt 13.5], não apenas porque a maior parte se mostra deveras contumaz para com Deus, mas também porque não foram dotados de olhos e ouvidos para isso. Insistirão: Portanto, o que dizer quando Deus chama para si àqueles a quem sabe que não haverão de vir? Agostinho responde por mim: “Queres disputar comigo? Maravilha-te comigo e exclama: ‘Oh, profundidade!’ Tenhamos ambos o mesmo sentir em temor, para que não pereçamos no erro.” Acresce que, se a eleição, segundo Paulo o atesta, é a mãe da fé, faço voltar seu argumento sobre sua cabeça: já que a fé não é geral, então a eleição é especial. Ora, pois, quando Paulo diz que “estamos cheios de toda bênção espiritual, visto que Deus nos elegera antes da criação do mundo” [Ef 1.3, 4], da seriação de causas e efeitos facilmente se conclui: visto que estas riquezas não são comuns a todos, então Deus elegeu apenas aqueles a quem assim o quis. Esta é a razão por que em outro lugar o Apóstolo recomenda a fé dos eleitos [Tt 1.1], para que alguém não pense que adquire para si a fé por seu próprio esforço; ao contrário, em Deus resida esta glória: os que antes elegera são por ele graciosamente iluminados. Bernardo, pois, diz corretamente: “Ouvem-nos os amigos, cada um individualmente, aos quais também fala: ‘Não temais, pequeno rebanho’ [Lc 12.32], ‘porque vos foi dado conhecer o mistério do reino dos céus’ [Mt 13.11]. Quem são estes? Seguramente, aqueles ‘a quem de antemão conheceu e predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho’ [Rm 8.29]. Fez-lhes conhecido seu grande e secreto desígnio: ‘o Senhor conhece os que são seus’ [2Tm 2.19]; mas o que era conhecido de Deus se manifestou aos homens, nem obviamente confere a outros a participação de tão grande mistério, senão aos mesmos a quem de antemão conheceu e predestinou para que fossem seus”. Pouco depois, conclui: “A misericórdia de Deus é de eternidade a eternidade sobre os que o temem” [Sl 103.17]; desde a eternidade em vista da predestinação; até a eternidade em vista da beatificação; uma não conhecendo principio, a outra não conhecendo fim”. Mas, afinal, por que se faz necessário citar Bernardo por testemunha, quando ouvimos da boca do Mestre que “nenhum outro vê o Pai, senão os que procedem de Deus” [Jo 6.46], fazendo saber por meio destas palavras que todos aqueles que não são gerados de Deus ficam aturdidos ante o esplendor de sua face? E de fato apropriadamente associa a fé à eleição, visto que esta sustenta o segundo lugar, ordem que as palavras de Cristo exprimem claramente em outro lugar: “Esta é a vontade do Pai, que eu não perca o que ele me deu; pois esta é sua vontade, que todos quantos crêem no Filho não pereçam” [Jo 6.39, 40]. Se quisesse salvar a todos, como guardião lhes poria à frente o Filho e inseriria a todos em seu carpo, mercê do sacro vínculo da fé. Agora se faz patente que a fé é o penhor singular de seu amor paterno, reservado aos filhos que adotou. Por isso Cristo diz em outro lugar: “As ovelhas seguem ao pastor, porque lhe reconhecem a voz; não seguem, porém, a um estranho, porquanto não conhecem a voz de estranhos” [Jo 10.3-5]. Mas, donde provem este discernimento, senão do fato de que seus ouvidos foram divinamente abertos? Ora, ninguém faz de si mesmo uma ovelha; ao contrário, se concretiza pela graça celestial. Do quê também ensina o Senhor que sua salvação é perpetuamente certa e segura, visto que ela está custodiada pelo insuperável poder de Deus [Jo 10.29]. Portanto, ele conclui que os incrédulos não fazem parte de suas ovelhas [Jo 10.26]; aliás, visto que não são do número daqueles que, através de Isaías [8.16; 54.13], Deus prometeu que seriam seus discípulos. Com efeito, como nos testemunhos que citei se exprime perseverança, ao mesmo tempo eles atestam a constância inflexível da eleição.

João Calvino