Total de visualizações de página

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

IMPROCEDÊNCIA DA TESE DE QUE OS RÉPROBOS SÃO INCULPÁVEIS, JÁ QUE SÃO PREDESTINADOS POR DEUS PARA O PECADO

Objetam ainda se foram predestinados por disposição de Deus a esta corrupção, que ora afirmamos ser causa de sua condenação. Porque, se é assim, quando perecem em sua corrupção, outra coisa não estão pagando senão as penas de sua miséria, na qual, por sua predestinação, Adão caiu e arrastou com ele toda sua progênie. Deus, pois, não será injusto, que tão cruelmente escarnece de suas criaturas? Sem dúvida confesso que foi pela vontade de Deus que todos os filhos de Adão nesta miserável condição em que ora se acham enredilhados. E isto é o que eu dizia inicialmente: por fim, tem-se sempre de volver ao mero arbítrio da vontade divina, cuja causa está escondida nele mesmo. Mas, não se segue diretamente que Deus esteja sujeito a esta injúria. Pois em Paulo encontramos isto: “Quem és tu, ó homem, que discuta com Deus? Porventura o objeto moldado dirá àquele que o moldou: Por que me moldaste assim? Por acaso não tem o oleiro poder para fazer de uma só massa um vaso para honra, e outro para desonra?” [Rm 9.20, 21]. Negarão que dessa maneira se defende verdadeiramente a justiça de Deus; ao contrário, aqui se capta subterfúgio como costumam ter os que estão destituídos de desculpa justa. Pois, que outra coisa aqui se parece dizer, senão que Deus possui um poder que não pode ser impedido de fazer absolutamente nada, conforme lhe parecer do agrado? Mas afirmo que isto é muito diferente, pois que razão mais poderosa se pode apresentar que enquanto somos impelidos a ponderar quem seja Deus? Ora, como admitiria alguma iniqüidade Aquele que é o Juiz do universo? Se pertence propriamente à natureza de Deus fazer juízo, portanto ele ama por natureza a justiça e aborrece a injustiça. Portanto, o Apóstolo não volveu os olhos com evasivas, como se estivesse embaraçado; simplesmente mostrou que a justiça de Deus é demasiado profunda e sublime para poder ser determinada com medidas humanas e ser compreendida por algo tão tacanho como é o entendimento humano. De fato, o Apóstolo confessa que os juízos divinos são tão secretos [Rm 11.33], por cuja profundeza seriam tragadas todas as mentes humanas, se aí tentassem penetrar. Mas, também ensina quão indigno é a essa lei reduzir as obras de Deus a tal condição que no momento em que não entendamos a razão e causa das mesmas nos atrevamos a condená-las. Conhecido é o dito de Salomão, o qual, no entanto, poucos entendem corretamente: “O Poderoso, que formou todas as coisas, paga ao tolo e recompensa ao transgressor” [Pv 26.10]. Pois ele está exclamando acerca da grandeza de Deus, em cujo arbítrio está exercendo a punição de estultos e transgressores, ainda que não os digne de seu Espírito. E portentosa é a sandice dos homens, enquanto desejam sujeitar assim à acanhada medida de sua razão aquilo que é imensurável. Os anjos que se mantiveram firmes em sua integridade, Paulo os denomina de eleitos[1Tm 5.21]; se sua constância foi fundada no beneplácito de Deus, a apostasia dos outros é uma confissão de que foram desamparados por ele, cuja causa outra coisa não pode ser senão a reprovação, a qual está oculta no conselho secreto de Deus.

João Calvino