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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

REFUTAÇÃO DAS CALÚNIAS COM AS QUAIS ESTA DOUTRINA TEM SIDO SEMPRE INIQUAMENTE IMPUGNADA

IMPROCEDÊNCIA DA TESE DE QUE A REALIDADE DA ELEIÇÃO NÃO IMPLICA A REALIDADE DA REPROVAÇÃO

Mas, enquanto o entendimento humano ouve estas coisas, sua petulância não pode ser contida, de forma variada e acima da medida, sem agitar-se como que pelo clangor de uma trombeta a dar ordem de ataque. E de fato muitos, como se quisessem impedir que Deus seja acusado de tão odiosa discriminação, então admitem a eleição, mas de maneira que negam que alguém seja reprovado. Mas nisto se enganam mui inepta e infantilmente, quando a própria eleição não pode ser mantida, a não ser que seja confrontada com a reprovação. Diz-se que ele separa àqueles a quem adota para a salvação; seria, pois, um notável desvario afirmar que os outros alcançam casualmente, ou adquirem por sua própria indústria o que a eleição dá a poucos. Portanto, aqueles a quem Deus pretere os reprova; não por outra causa, mas porque os quer excluir da herança para a qual predestina a seus filhos. Tampouco se pode tolerar a obstinação dos que não permitem que se lhes ponha um freio com a Palavra de Deus, tratando-se de um juízo incompreensível dele, o qual até mesmo os próprios anjos adoram. Com efeito, já ouvimos que o endurecimento está não menos na mão e no arbítrio de Deus quanto depende de sua misericórdia. Aliás, como o exemplo que me referi previamente, tampouco Paulo se esforça ansiosamente por isentar a Deus de falsidade e mentira; apenas adverte que não é lícito à coisa modelada contender com seu modelador[Rm 9.20]. Ora, aqueles que não admitem que alguém seja reprovado por Deus, como se desvencilharão dessa sentença de Cristo: “Toda árvore que meu Pai não plantou será arrancada?” [Mt 15.13]. Ouvem expressamente que o Pai celestial não teve por bem plantar em seu campo, como árvores sacrossantas, estão evidentemente destinados à perdição. Se negam ser este um sinal de reprovação, não há nada tão claro que lhes possa ser provado. Mas se não cessam de vociferar, dizendo que nossa fé se dê por satisfeita ouvindo o aviso que Paulo nos dá: que não há motivo para se discutir com Deus se, de um lado, “querendo manifestar sua ira e fazer conhecido seu poder, suporta em muita tolerância e brandura os vasos de ira apresentados para a perdição”, por outro lado, porém, “Para que também desse a conhecer as riquezas de sua glória nos vasos de misericórdia, que para a glória já preparou de antemão” [Rm 9.22, 23]. Observem os leitores que Paulo, para tirar toda ocasião a sussurros e injúrias, outorga a soberania suprema à ira e poder de Deus, porque é iníquo sujeitar-se ao nosso alvitre esses juízos profundos que absorvem todos os nossos sentidos. É frívolo o que nossos adversários respondem: que Deus não rejeita totalmente àqueles a quem tolera com brandura; ao contrário, permanece de ânimo suspenso para com eles para ver se arrependam. Como se de fato Paulo atribuísse a Deus paciência mercê da qual aguarde a conversão daqueles que diz já preparados para a perdição. Agostinho, pois, diz retamente, explicando esta passagem: quando a paciência é associada ao seu poder, Deus não permite, mas governa por seu poder. Replicam dizendo que Paulo, quando diz que os vasos de ira estão preparados para a destruição, acrescenta em seguida que Deus já preparou os vasos de misericórdia para a salvação, como se por meio destas palavras tencionasse dizer que Deus é o autor da salvação dos fiéis, e que se deve atribuir-lhe a glória desse fato; mas que aqueles que se perdem se deve a eles mesmos por meio de seu livre-arbítrio, sem que Deus os reprove.341 Mas, ainda que eu lhes conceda que, com diversa forma de falar, Paulo abranda a aspereza da primeira cláusula, mui longe está de admissível, pois, transferir a preparação para a perdição a outro fator fora do conselho secreto de Deus, o que é asseverado um pouco antes no contexto: “Deus instigou a faraó” [Rm 9.17], em seguida: “A quem assim o quer, endurece” [Rm 9.18]. Do quê se segue que o conselho secreto de Deus é a causa do endurecimento. Eu sustento precisamente o que Agostinho ensina: onde Deus converte lobos em ovelhas, por graça mais poderosa os reforma para que sua dureza seja domada; e que não converte os obstinados porque não lhes outorga uma graça mais poderosa, da qual ele não carece, caso queira exercitá-la.

João Calvino