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terça-feira, 2 de outubro de 2018

A DISTINÇÃO EVOCADA ENTRE A VONTADE E A PERMISSIVIDADE DE DEUS É IRRELEVANTE

Aqui recorre-se à distinção de vontade e permissão, segundo a qual querem manter que os ímpios perecem pela mera permissão divina, não porque Deus assim o queira. Mas, por que diremos que o permite, senão porque assim o quer? Pois não é provável que o homem tenha buscado sua perdição pela mera permissão de Deus, e não por sua ordenação. Como se realmente Deus não haja estabelecido em qual condição quisesse estar a principal de suas criaturas. Portanto, não hesitarei, com Agostinho,349 em simplesmente confessar que “a vontade de Deus é a necessidade das coisas”, e que haverá necessariamente de ocorrer aquilo que ele quis, da mesma forma que aquelas coisas que previu verdadeiramente haverão de vir à existência. Agora, porém, se em defesa própria e dos ímpios, ou pelagianos, ou maniqueus, ou anabatistas, ou epicureus, pois com estas quatro seitas nos temos de haver nesta questão, invoquem a necessidade pela qual são constrangidos pela predestinação divina, nada alegam pertinente à causa. Pois, se a predestinação outra coisa não é senão a administração da justiça divina, embora oculta, porém irrepreensível, uma vez que é certo que não eram indignos de sua predestinação para tal fim, também é igualmente certo que a ruína em que caem pela predestinação divina é justa. Além disso, sua perdição de tal maneira pende da predestinação divina, que ao mesmo tempo há de haver neles a causa e a matéria dela. O primeiro homem, pois, caiu porque o Senhor assim julgara ser conveniente. Por que ele assim o julgou nos é oculto. Entretanto, é certo que ele não o julgou de outro modo, senão porque via daí ser, com razão, iluminada a glória de seu nome. Onde ouves menção da glória de Deus, aí deves pensar em sua justiça. Ora, o que merece louvor tem de ser justo. Portanto, o homem cai porque assim o ordenou a providência de Deus; no entanto, cai por falha sua. Pouco antes o Senhor declarara que todas as coisas que fizera eram muito boas [Gn 1.31]. Portanto, donde procede essa depravação do homem pela qual se apartou de seu Deus? Para que não se pensasse proceder ela da criação, Deus aprovara com seu elogio o que proviera de si próprio. Logo, por sua própria malignidade o homem corrompeu a natureza pura que havia recebido do Senhor, e em sua ruína arrastou consigo à ruína toda a posteridade. Daí devermos contemplar a causa evidente de nossa condenação na natureza corrupta do gênero humano, que nos é mais próxima, antes que a busquemos, oculta e totalmente incompreensível, na predestinação de Deus. Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à imensa sabedoria de Deus, que sucumba em seus muitos arcanos. Pois dessas coisas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, uma espécie de loucura, a avidez de conhecimento.

João Calvino