Há outros que, enquanto querem remediar a este mal, pouco falta a que não
prescrevam que seja sepultada toda e qualquer menção da predestinação. De fato,
ensinam que se deve fugir a toda e qualquer questão relativa a ela, não de outra
forma senão como de algo perigoso, dos quais ainda que, com razão, se deva louvar
a moderação, porquanto julgam com tão grande sobriedade que se devem reverenciar
os mistérios, no entanto visto que descem a um nível demasiadamente baixo,
pouco avançam em relação ao entendimento humano, que não se deixa facilmente
ser embargado. Portanto, para que também neste aspecto mantenhamos o legítimo
limite, é preciso retornar à Palavra do Senhor, na qual temos segura regra à compreensão.
Pois a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não se deixa de pôr
coisa alguma necessária e útil de se conhecer, nem tampouco se ensina nada mais
além do que se precisa saber.
Portanto, tudo quanto na Escritura se dá a conhecer acerca da predestinação, é
preciso cuidar para que disso não privemos os fiéis, a fim de que não pareçamos ou
maldosamente defraudá-los da benevolência de seu Deus, ou acusar e escarnecer o
Espírito por haver divulgado essas coisas que seria proveitoso fossem suprimidas e
mantidas em segredo. Insisto que devemos permitir ao homem cristão abrir a mente
e os ouvidos a todas as palavras de Deus que lhe são dirigidas, desde que se faça
com esta moderação: que assim que o Senhor haja fechado sua santa boca, também
fecha ele atrás de si o caminho à especulação. Aqui está o melhor limite da sobriedade:
que ao aprendermos sigamos a Deus, deixando que ele fale primeiro; e se o
Senhor deixa de falar, tampouco nós queiramos saber mais, nem avançar mais um
passo. Tampouco é de tão grande relevância o fato de que temem perigo de que com
isso desviemos a mente dos oráculos de Deus. Célebre é o dito de Salomão: “Glória
de Deus está nas coisas encobertas” [Pv 25.2]. Como, porém, não só a piedade, mas
também o senso comum, ditem que isto não se entende de toda e qualquer coisa
indiscriminadamente, cabe-nos buscar uma distinção, para que não tenhamos prazer
na ignorância bruta sob o pretexto de modéstia e sobriedade. Com efeito, esta distinção é expressa em mui breves palavras por Moisés: “As coisas encobertas”,
diz ele, “pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós
e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” [Dt
29.29]. Vemos, pois, como ele exorta a seu povo a que se aplique ao estudo da lei,
porque a Deus aprouve promulgá-la, mas ao mesmo povo, por esta mera razão, ele
contém nestes limites: que não é lícito aos mortais ingerir-se nas coisas secretas de
Deus.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32
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quinta-feira, 27 de setembro de 2018
SOMENTE DA ESCRITURA SE DEVE PERSCRUTAR A PREDESTINAÇÃO, O QUE ALIJARÁ A ESPECULAÇÃO TEMERÁRIA E MESMO DANOSA
“Chegamos”, diz Agostinho, “ao caminho da fé; mantenha mo-lo com firme
constância. Que ele nos conduza à câmara do Rei, na qual estão escondidos todos os
tesouros do conhecimento e da sabedoria. Ora, a seus grandes e mui seletos discípulos
não olhava com despeito o próprio Cristo Senhor, quando disse: ‘Muitas coisas
tenho para vos dizer, porém não as podeis suportar agora’ [Jo 16.12]. Necessário se
faz andar, necessário se faz avançar, necessário se faz crescer, para que nossos corações
sejam capazes dessas coisas que não podemos presentemente apreender. Porque,
se o último dia nos achar progredindo, aí aprenderemos o que aqui não pudemos
aprender.”
Se reina em nós o pensamento de que a Palavra do Senhor é o único caminho
que nos conduz a investigar tudo quanto é justo dele sustentar-se, é a única luz que
à frente nos resplandece para bem perceber tudo quanto a respeito dele convém
considerar-se, de toda temeridade facilmente nos conterá e coibirá. Porque sabemos
que no momento em que transpusermos os limites assinalados pela Escritura, seremos
perdidos fora do caminho e entre trevas espessas, no qual teremos necessariamente
que vagar, muitas vezes, sem rumo, resvalar e a tropeçar.
Portanto, que antes de tudo isto esteja diante dos olhos: que procurar outro conhecimento
da predestinção além daquele que se expõe na Palavra de Deus, é como
se um homem quisesse andar fora do caminho por rochas e penhascos, ou quisesse
ver em densa escuridão. Aliás, tampouco nos cause vergonha ignorar algo nessa
matéria na qual há certa douta ignorância. Antes, de bom grado nos abstenhamos da
perquirição desse conhecimento cuja afetação é tão estulta quão perigosa, e até
mesmo fatal. Porque, se a intemperança da mente nos acossa, é oportuno que sempre se lhe oponha este provérbio com que seja repelida: “Comer mel demais não é
bom; assim, a busca da própria glória não é glória” [Pv 25.27]. Ora, há razão para
recuarmos atemorizados dessa ousadia, a qual nos pode precipitar à ruína.
João Calvino
João Calvino
DA ETERNA ELEIÇÃO, PELA QUAL DEUS A UNS PREDESTINOU PARA A SALVAÇÃO, A OUTROS PARA A PERDIÇÃO
PROCEDÊNCIA, RAZOABILIDADE E IMPORTÂNCIA DA DOUTRINA DA ELEIÇÃO
E PREDESTINAÇÃO, QUE A ESPECULAÇÃO EXPLORA E CONFUNDE
Mas, já que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente, e entre aqueles a quem é pregado não acha a mesma receptividade, quer qualitativa, quer continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável profundeza do juízo divino. Pois não há dúvida de que esta variedade serve também ao arbítrio da eterna eleição de Deus. Porque, se é notório que pelo arbítrio de Deus suceder que a salvação é oferecida gratuitamente a uns, enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma, se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição e predestinação. Questão assaz intrincada, como parece a muitos, porquanto pensam não ser de modo algum coerente que da multidão comum dos homens uns sejam predestinados à salvação, outros à perdição. Claramente se verá, pela argumentação que empregaremos nesta matéria, que são eles que, por falta de discernimento, se enredam. Acresce ainda que na própria escuridão que aterra se põe à mostra não só o lado útil desta doutrina, como também seu fruto dulcíssimo. Jamais haveremos de ser claramente persuadidos, como convém, de que nossa salvação flui da fonte da graciosa misericórdia de Deus, até que sua eterna eleição se nos faça conhecida, a qual, mercê deste contraste, ilumina a graça de Deus, a saber, que ele não adota à esperança da salvação a todos indiscriminadamente; ao contrário, ele dá a uns o que nega a outros. É notório quanto a ignorância deste princípio diminui da glória de Deus, e quanto prejudica a verdadeira humildade. Com efeito, o que é tão necessário que se conheça Paulo nega que se possa conhecer, a não ser que Deus, descartando inteiramente a consideração pelas obras, elege aqueles que para si decretou. “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Se, porém é pelas obras, já não é mais graça; de outra maneira a obra já não é obra” [Rm 11.5, 6]. Se para fazer patente que a salvação não nos provém de outra parte, senão da mera liberalidade de Deus, temos que retroceder-nos à origem da eleição, aqueles que querem extinguir isto, quanto lhes é possível, malignamente obscurecem o que se devia celebrar com magnificência e de bocas cheias e extirpam a própria raiz da humildade. Paulo atesta claramente, quando a salvação de um remanescente do povo é atribuída à eleição da graça, que afinal se conhece então que Deus preserva por seu mero beneplácito aqueles a quem quer, e que não lhes paga nenhum salário, porquanto nenhum lhes pode dever. Aqueles que fecham as portas para que alguém não ouse dar-se ao gosto desta doutrina, fazem aos homens não menor agravo que a Deus, porquanto nenhuma coisa fora desta será suficiente para que nos humilhemos como devemos, nem tampouco sentiremos deveras quão obrigados estamos para com Deus.311 Com efeito, em nenhum outro lugar há sustentáculo à firme confiança, como o diz também Cristo, porque, para assegurar-nos e livrar-nos de todo temor em meio a tantos perigos, insídias e conflitos mortais, e para fazer-nos sair vitoriosos promete que nenhum perecerá de quantos o Pai lhe confiou [Jo 10.28, 29]. Disto concluímos que todos aqueles que não se reconhecem parte do povo de Deus são miseráveis, pois sempre estão num contínuo tremor; e por isso todos aqueles que fecham seus olhos e não querem ver nem ouvir estes três frutos que apontamos e se propõem a derrubar este fundamento, pensam de forma totalmente equivocada e fazem grande dano a si e a todos os fiéis. E ainda mais, afirmo que daqui nasce a Igreja, a qual, de outra sorte, como corretamente ensina Bernardo,312 não poderia ser achada, nem ser conhecida entre as criaturas, visto que, de modo algum admirável, jaz escondida no recesso da bem-aventurada predestinação e entre a massa miserável dos homens. Antes, porém, de entrar na matéria propriamente dita, tenho que abordar previamente, em dois lugares distintos, duplo gênero de homens. A discussão acerca da predestinação, quando já por si mesma é matéria um tanto enredilhada, a curiosidade dos homens a torna assaz confusa e inclusive perigosa, visto que o entendimento humano não se pode refrear nem deter-se, por mais limites e termos que se lhes assinale, para não extraviar-se por caminhos proibidos e elevar-se com empenho, se fosse possível, de não deixar segredo de Deus sem revolver e esquadrinhar. Quando vemos a muitos, a cada passo, arrojar-se a esta audácia e improbidade, e entre esses alguns doutro modo não maus, importa que sejam, em tempo oportuno, advertidos sobre qual lhes é nesta parte a medida de seu dever. Portanto, primeiro que se lembrem de que, enquanto investigam a predestinação, tentam penetrar nos íntimos recessos da divina sabedoria, na qual, se alguém segura e confiantemente irrompe, tampouco conseguirá saciar-se com que sua curiosidade, e estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma saída. Pois não é justo que impunemente procure o homem devassar as coisas que o Senhor quis que fossem escondidas em si próprio e esquadrinhe desde a própria eternidade a sublimidade da sabedoria que ele quis que seja adorada e não que seja apreendida, para que também por meio dela ele viesse a ser admirado. Os desígnios secretos de sua vontade que determinou devessem ser-nos desvendados, esses no-los revelou em sua Palavra. Mas determinou que é bom comunicar-nos tudo aquilo que via ser nos necessário e proveitoso.
João Calvino
Mas, já que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente, e entre aqueles a quem é pregado não acha a mesma receptividade, quer qualitativa, quer continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável profundeza do juízo divino. Pois não há dúvida de que esta variedade serve também ao arbítrio da eterna eleição de Deus. Porque, se é notório que pelo arbítrio de Deus suceder que a salvação é oferecida gratuitamente a uns, enquanto que outros são impedidos de seu acesso, aqui prontamente emergem grandes e árduas questões, as quais não podem ser explicadas de outra forma, se as mentes pias têm por definido o que se impõe manter a respeito de eleição e predestinação. Questão assaz intrincada, como parece a muitos, porquanto pensam não ser de modo algum coerente que da multidão comum dos homens uns sejam predestinados à salvação, outros à perdição. Claramente se verá, pela argumentação que empregaremos nesta matéria, que são eles que, por falta de discernimento, se enredam. Acresce ainda que na própria escuridão que aterra se põe à mostra não só o lado útil desta doutrina, como também seu fruto dulcíssimo. Jamais haveremos de ser claramente persuadidos, como convém, de que nossa salvação flui da fonte da graciosa misericórdia de Deus, até que sua eterna eleição se nos faça conhecida, a qual, mercê deste contraste, ilumina a graça de Deus, a saber, que ele não adota à esperança da salvação a todos indiscriminadamente; ao contrário, ele dá a uns o que nega a outros. É notório quanto a ignorância deste princípio diminui da glória de Deus, e quanto prejudica a verdadeira humildade. Com efeito, o que é tão necessário que se conheça Paulo nega que se possa conhecer, a não ser que Deus, descartando inteiramente a consideração pelas obras, elege aqueles que para si decretou. “Assim, pois, também agora neste tempo ficou um remanescente, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Se, porém é pelas obras, já não é mais graça; de outra maneira a obra já não é obra” [Rm 11.5, 6]. Se para fazer patente que a salvação não nos provém de outra parte, senão da mera liberalidade de Deus, temos que retroceder-nos à origem da eleição, aqueles que querem extinguir isto, quanto lhes é possível, malignamente obscurecem o que se devia celebrar com magnificência e de bocas cheias e extirpam a própria raiz da humildade. Paulo atesta claramente, quando a salvação de um remanescente do povo é atribuída à eleição da graça, que afinal se conhece então que Deus preserva por seu mero beneplácito aqueles a quem quer, e que não lhes paga nenhum salário, porquanto nenhum lhes pode dever. Aqueles que fecham as portas para que alguém não ouse dar-se ao gosto desta doutrina, fazem aos homens não menor agravo que a Deus, porquanto nenhuma coisa fora desta será suficiente para que nos humilhemos como devemos, nem tampouco sentiremos deveras quão obrigados estamos para com Deus.311 Com efeito, em nenhum outro lugar há sustentáculo à firme confiança, como o diz também Cristo, porque, para assegurar-nos e livrar-nos de todo temor em meio a tantos perigos, insídias e conflitos mortais, e para fazer-nos sair vitoriosos promete que nenhum perecerá de quantos o Pai lhe confiou [Jo 10.28, 29]. Disto concluímos que todos aqueles que não se reconhecem parte do povo de Deus são miseráveis, pois sempre estão num contínuo tremor; e por isso todos aqueles que fecham seus olhos e não querem ver nem ouvir estes três frutos que apontamos e se propõem a derrubar este fundamento, pensam de forma totalmente equivocada e fazem grande dano a si e a todos os fiéis. E ainda mais, afirmo que daqui nasce a Igreja, a qual, de outra sorte, como corretamente ensina Bernardo,312 não poderia ser achada, nem ser conhecida entre as criaturas, visto que, de modo algum admirável, jaz escondida no recesso da bem-aventurada predestinação e entre a massa miserável dos homens. Antes, porém, de entrar na matéria propriamente dita, tenho que abordar previamente, em dois lugares distintos, duplo gênero de homens. A discussão acerca da predestinação, quando já por si mesma é matéria um tanto enredilhada, a curiosidade dos homens a torna assaz confusa e inclusive perigosa, visto que o entendimento humano não se pode refrear nem deter-se, por mais limites e termos que se lhes assinale, para não extraviar-se por caminhos proibidos e elevar-se com empenho, se fosse possível, de não deixar segredo de Deus sem revolver e esquadrinhar. Quando vemos a muitos, a cada passo, arrojar-se a esta audácia e improbidade, e entre esses alguns doutro modo não maus, importa que sejam, em tempo oportuno, advertidos sobre qual lhes é nesta parte a medida de seu dever. Portanto, primeiro que se lembrem de que, enquanto investigam a predestinação, tentam penetrar nos íntimos recessos da divina sabedoria, na qual, se alguém segura e confiantemente irrompe, tampouco conseguirá saciar-se com que sua curiosidade, e estará a adentrar um labirinto do qual não achará nenhuma saída. Pois não é justo que impunemente procure o homem devassar as coisas que o Senhor quis que fossem escondidas em si próprio e esquadrinhe desde a própria eternidade a sublimidade da sabedoria que ele quis que seja adorada e não que seja apreendida, para que também por meio dela ele viesse a ser admirado. Os desígnios secretos de sua vontade que determinou devessem ser-nos desvendados, esses no-los revelou em sua Palavra. Mas determinou que é bom comunicar-nos tudo aquilo que via ser nos necessário e proveitoso.
João Calvino
NEM SEMPRE DEUS PARECE OUVIR-NOS AS ORAÇÕES; MAS, AINDA ASSIM, REQUER-SE CONSTÂNCIA E PERSEVERANÇA NO EXERCÍCIO DA ORAÇÃO
Pois se afinal nem mesmo depois de longa espera nosso senso perceba que beneficio
se obteve pela oração, nem que sinta daí qualquer fruto, entretanto, nossa fé
nos assegurará daquilo que não poderá ser percebido pela sensibilidade, a saber,
que obtivemos o que era conveniente, quando, tantas vezes e com tanta certeza o
Senhor promete que nossas preocupações haverão de ser por ele atendidas, desde
que sejam depositadas em seu seio. E assim ele fará com que na pobreza possuamos
abundância, na aflição tenhamos consolação. Ora, ainda que todas as coisas falhem,
contudo, Deus nunca nos haverá de desamparar, o qual não pode frustrar a expectação
e a paciência dos seus. Somente ele nos servirá mais que todos, pois ele contém
em si mesmo tudo quanto existe, eque finalmente nos haverá de revelar tudo isso no
Dia do Juízo, quando abertamente manifestará seu reino.
Acrescento ainda que, mesmo quando Deus nos atenda aos rogos, contudo, nem sempre ele responde conforme a expressa fórmula do pedido; ao contrário, mantendo-nos como que suspensos, no entanto de modo não previsto mostra que nossas orações não foram vãs. Isto significam estas palavras de João: “E se sabemos que ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos que alcançamos as petições que lhe fizemos” [1Jo 5.15]. Isto parece mera superfluidade de palavras, mas de fato é uma declaração muitíssimo útil, porque Deus, ainda quando não atenda ao desejo, no entanto é favorável e propício a nossas orações, de sorte que nunca nos frustra a esperança arrimada em sua Palavra. Com esta paciência, porém, os fiéis têm necessidade de ser sustentados até este ponto, porque não haveriam de estar firmes por longo tempo a não ser que nela se reclinassem. Pois o Senhor não prova os seus com experiências leves, nem os exercita frouxamente; pelo contrário, freqüentemente os impele até a extremos; e assim impelidos, os deixa chafurdar-se nesse lodaçal por longo tempo, antes que lhes proporcione algum gosto de seu dulçor. E, como diz Ana: “O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e conduz de volta” [1Sm 2.6]. O que lhes ficaria ao ver-se afligidos desta maneira, senão perder o ânimo, desfalecer e cair no desespero, a não ser que, quando se encontram assim afligidos, desconsolados e semimortos, os console e os ponha de pé a consolação de que Deus tem seus olhos postos neles, e que, por fim, triunfarão de todos os males que presentemente padecem e sofrem?309 Não obstante, seja como for que se postem na certeza desta esperança, enquanto isso não deixam de orar, porquanto, a não ser que a constância de perseverar assista à oração, nada conseguimos com a oração.
João Calvino
Acrescento ainda que, mesmo quando Deus nos atenda aos rogos, contudo, nem sempre ele responde conforme a expressa fórmula do pedido; ao contrário, mantendo-nos como que suspensos, no entanto de modo não previsto mostra que nossas orações não foram vãs. Isto significam estas palavras de João: “E se sabemos que ele nos ouve em tudo o que pedimos, sabemos que alcançamos as petições que lhe fizemos” [1Jo 5.15]. Isto parece mera superfluidade de palavras, mas de fato é uma declaração muitíssimo útil, porque Deus, ainda quando não atenda ao desejo, no entanto é favorável e propício a nossas orações, de sorte que nunca nos frustra a esperança arrimada em sua Palavra. Com esta paciência, porém, os fiéis têm necessidade de ser sustentados até este ponto, porque não haveriam de estar firmes por longo tempo a não ser que nela se reclinassem. Pois o Senhor não prova os seus com experiências leves, nem os exercita frouxamente; pelo contrário, freqüentemente os impele até a extremos; e assim impelidos, os deixa chafurdar-se nesse lodaçal por longo tempo, antes que lhes proporcione algum gosto de seu dulçor. E, como diz Ana: “O Senhor é o que tira a vida e a dá; faz descer à sepultura e conduz de volta” [1Sm 2.6]. O que lhes ficaria ao ver-se afligidos desta maneira, senão perder o ânimo, desfalecer e cair no desespero, a não ser que, quando se encontram assim afligidos, desconsolados e semimortos, os console e os ponha de pé a consolação de que Deus tem seus olhos postos neles, e que, por fim, triunfarão de todos os males que presentemente padecem e sofrem?309 Não obstante, seja como for que se postem na certeza desta esperança, enquanto isso não deixam de orar, porquanto, a não ser que a constância de perseverar assista à oração, nada conseguimos com a oração.
João Calvino
PERSEVERANÇA, PACIÊNCIA E SUBMISSÃO QUE SE FAZEM INDISPENSÁVEIS NO EXERCÍCIO DA ORAÇÃO
Se de ânimo disposto para com esta obediência, nos deixamos ser regidos pelas
leis da divina providência, aprenderemos facilmente a perseverar em oração e, suspensos
os desejos, a pacientemente esperar no Senhor, certos de que, embora de
modo algum se ponha ele à mostra, todavia nos está sempre presente, e a seu tempo
haverá de declarar que seus ouvidos nunca foram surdos às nossas orações, as quais,
aos olhos dos homens, pareciam ignoradas. Mui presente consolação, porém, nos haverá esta de ser, para que não desfaleçamos e em desespero não caiamos, se a
qualquer tempo Deus não nos responder às primeiras orações, como costumam os
que, enquanto se deixam impulsionar apenas por seu ardor, invocam a Deus de tal
modo que, a não ser que ele atenda aos primeiros arroubos e traga ajuda imediata,
prontamente o imaginam ofendido e irado com eles e, descartada toda esperança de
alcançar o que suplicam, desistem de invocá-lo. Senão que, antes, nossa esperança
distendendo com bem temperada eqüidade de ânimo, avancemos para com essa
perseverança que tão grandemente se nos recomenda nas Escrituras. Ora, nos Salmos
é possível, freqüentemente, ver que Davi e os demais fiéis, quando, quase cansados
de orar, parecem haver golpeado o ar, uma vez que suas palavras são derramadas
diante de um Deus surdo, contudo, não desistem de orar, porquanto não dão à
Palavra de Deus a autoridade que lhe é atribuída, a não ser que a fé esteja acima de
todas as contingências.
Além disso, isto também nos servirá de excelente remédio para guardar-nos de
tentar a Deus e de fatigá-lo com nossa impiedade, provocando-o contra nós, como é
o costume de muitos, os quais somente sob determinada condição pactuam com
Deus; e como se ele fosse escravo de seus desejos, o mantêm limitado às leis de sua
estipulação, às quais, a menos que prontamente obedeça, indignam-se, reclamam,
protestam, murmuram, revoltam-se. Portanto, Deus lhes concede muitas vezes em
seu furor o que em sua misericórdia e favor nega a outros. Prova disso são os
filhos de Israel, aos quais melhor fora não tivessem sido ouvidos pelo Senhor que
juntamente com as carnes tragarem-lhe a indignação [Nm 11.18-33].
João Calvino
João Calvino
MOTIVOS E MOMENTOS DETERMINADOS PARA A ORAÇÃO REGULAR
Mas, ainda que já dissemos previamente que, elevado o coração a Deus, é preciso
suspirar sempre e orar sem intermissão, visto que, no entanto, tamanha é nossa
fraqueza que tenha necessidade de ser sustentada por muitos esforços; que tamanha
é nossa inércia, que tenha necessidade de ser excitada de aguilhões; que convém
que a cada um de nós sejam fixadas horas especiais para esse empreendimento,
horas que não transcorram sem oração e que tenham nisto inteiramente ocupadas
todas as disposições da alma, a saber: quando de manhã nos levantamos, antes que
nos atiremos ao labor diário, quando nos assentamos à refeição, quando pela bênção
de Deus fomos nutridos, quando nos recolhemos ao repouso. Contanto que esta
observância de horas não seja supersticiosa, nas quais, como se quitando nossa
obrigação a Deus, tudo fosse como se nos desobrigássemos em relação às demais
horas; mas, ao contrário, constitui a disciplina de nossa fraqueza, pela qual deve ser
assim exercitada e continuamente estimulada.
Deve-se revestir de especial solicitude sempre que nos virmos premidos por
alguma angústia particular, ou vermos outros serem premidos, então recorrendo a
ele imediatamente, não ligeiros de pés, mas de ânimo. Então, quanto possível, não
deixemos passar indiferente, seja nossa prosperidade, seja a de outros, sem que
atestemos e reconheçamos aí sua mão, com louvor e ação de graças. Por fim, deve se
observar em toda oração que não queremos obrigar Deus a certas circunstâncias,
nem prescrever-lhe em que tempo, em que lugar, por qual forma haverá ele de fazer
alguma coisa, assim como nesta oração somos ensinados a não fixar-lhe nenhuma
lei, ou impor-lhe nenhuma condição; pelo contrário, devemos deixar a seu arbítrio
que faça o que haverá de fazer em qual forma, em qual tempo, em qual lugar lhe
parecer bem. Em vista disso, antes de formularmos a nosso favor qualquer oração,
proferimos de antemão que seja feita sua vontade [Mt 6.10], onde já sujeitamos à
sua vontade a nossa, para que, exatamente como se fosse contida por um freio, não
presuma compelir a Deus à sua ordem; ao contrário disso, que o constitua árbitro e
moderador de todos seus votos.
João Calvino
João Calvino
O ELEMENTO PADRONIZANTE E INCONTESTÁVEL DE NOSSAS ORAÇÕES NÃO É A FORMA DO PAI NOSSO, MAS SEU CONTEÚDO
Não queremos que estas coisas sejam assim recebidas, como se estivéssemos de
tal modo limitados a esta fórmula de orar, que não seja permitido mudar sequer uma
palavra ou sílaba. Ora, nas Escrituras, aqui e ali, se lêem muitas orações que são
muito diversas desta nas palavras, contudo, são compostas no mesmo Espírito e
cujo uso nos é muito útil. Pelo mesmo Espírito, muitas orações são constantemente
sugeridas aos fiéis que não concordam tanto com a similaridade de seus termos. Ao
ensinarmos assim, estamos apenas advogando que alguém não busque absolutamente
outra coisa ou espere senão o que foi sumarizadamente compreendido nesta
oração; e, ainda que com palavras muito diversas, contudo, no sentido não haja
variação. Desse modo, todas as orações, não somente as que se constam nas Escrituras,
mas também as que procedem dos corações piedosos, devem conformar-se a
esta, e que jamais se pode uma que se lhe iguale, muita menos que a supere em
perfeição. Nada foi aqui omitido que se deva aqui cogitar aos louvores de Deus,
nada que deva vir à mente do homem, em função de seus proveitos, e de fato ela é
tão precisamente formulada, que a todos foi, com razão, abstraída a esperança de
tentar algo melhor. Em suma, lembremo-nos de que este é o ensino da divina Sabedoria,
a qual ensinou o que quis, porém, quis o que viu ser necessário.
João Calvino
João Calvino
O PAI NOSSO É UM PADRÃO COMPLETO, PERFEITO E ABSOLUTO DA ORAÇÃO LEGÍTIMA
Tudo quanto devemos, e até absolutamente podemos pedir de Deus, temos descrito
nesta fórmula e, por assim dizer, regra de orar, ensinada pelo melhor dos mestres,
Cristo, a quem o Pai nos constituiu por professor e unicamente a quem quis que seja ouvido [Mt 17.5]. Ora, Cristo não só foi sempre sua eterna Sabedoria [Is 11.2],
mas também, feito homem, foi dado aos homens como o Anjo do grande conselho
[Is 9.6; 28.29; Jr 32.19]. E em todos os respeitos esta oração é tão absoluta, que
qualquer elemento estranho e alheio que lhe for acrescentado, que não possa ser-lhe
atribuído, seja ímpio e indigno de ser aprovado por Deus. Ora, ele prescreveu nesta
suma o que seja digno dele, o que lhe seja aceitável, o que nos seja necessário,
finalmente, o que ele mesmo quiser outorgar.
Por esta razão, os que ousam avançar mais longe e rogar a Deus algo além
dessas coisas, em primeiro lugar, na verdade, querem acrescentar de sua própria à
sabedoria de Deus, o que não pode ocorrer sem insana blasfêmia; em segundo lugar,
não se mantêm sob a vontade de Deus, pelo contrário, desprezada esta, em sua
incontida cupidez vagueiam mais distante; em terceiro lugar, jamais alcançarão algo,
uma vez que orem sem fé. Entretanto, não há de duvidar que todas as orações deste
cunho sejam feitas à parte da fé, visto que aqui está ausente a Palavra de Deus na
qual, salvo se a fé estiver sempre apoiada, de modo algum poderá manter-se. Mas os
que, desprezada a regra do Mestre, cedem a seus desejos, não só carecem da Palavra
de Deus, mas inclusive, quanto podem, se lhe opõem com todo o esforço. Por isso
foi que Tertuliano a chamou, não menos elegante que verdadeiramente, a oração
legítima, tacitamente indicando que todas as demais são contrárias e ilícitas.
João Calvino
João Calvino
CONCLUSÃO OU PORÇÃO DOXOLÓGICA DA ORAÇÃO DO SENHOR E SEU SIGNIFICADO
Estas três petições, nas quais encomendamos a Deus especificamente a nós mesmos
e a todas as nossas coisas, mostram claramente o que dissemos antes: as orações
dos cristãos devem ser associativase ter em mira a edificação comum da Igreja
e o avanço da comunhão dos fiéis. Ora, cada um não roga que algo seja dado particularmente
a si; aliás, todos comumente pedimos o pão nosso, a remissão dos pecados,
que não sejamos induzidos à tentação, que sejamos livrados da Maligno.
Em seguida adiciona-se a causa por que tão grande é não só nossa ousadia de
pedir, mas também a confiança de obter, causa que, embora não ocorra nos exemplares
latinos, no entanto aqui parece tão mais apropriado inserir do que omitir,
isto é, que “dele é o reino, e o poder, e a glória para sempre”. Este é um remanso
firme e tranqüilo à nossa fé, pois se nossas orações fossem recomendadas a Deus
com base em nossa própria dignidade, quem diante dele ousaria sequer balbuciar?
Ora, por mais miseráveis que sejamos, por mais que de todos fôssemos os mais
indignos, embora vazios de toda honra, entretanto nunca nos faltará causa de orar,
nunca cessará a confiança, quando não se pode subtrair de nosso Pai quer seu reino,
seu poder ou sua glória.
No final da Oração do Senhor adiciona-se o Amém, termo com que se exprime
o ardor do desejo de obter as coisas que foram pedidas a Deus, e se nos firma a
esperança de que todas as coisas dessa natureza já foram alcançadas, e com certeza
haverão de nos ser concedidas, uma vez que foram prometidas por Deus, o qual não
pode enganar. E isso se coaduna com aquela fórmula que mencionamos previamente:
“Faz isto, ó Senhor, por amor de teu nome, não em consideração a nós ou a nossa
justiça [Dn 9.18, 19]; pela qual os santos não só exprimem o propósito de suas
súplicas, mas também confessam ser indignos de alcançá-las, a não ser que Deus
busque a causa em si mesmo, e unicamente na natureza de Deus lhes proceda a
confiança de obter o que pedem.
João Calvino
João Calvino
SEXTA PETIÇÃO: “E NÃO NOS DEIXES CAIR EM TENTAÇÃO, MAS LIVRA-NOS DO MAL”
A sexta petição [Mt 6.13], como dissemos, corresponde à promessa de que a lei
de Deus seria gravada em nosso coração[Pv 3.3]; mas, visto que não obedecemos a
Deus sem contínua luta, duros e árduos embates, aqui pedimos que sejamos equipados
com armas e defendidos por proteção de tal natureza que estejamos aptos à
vitória, pelo que somos avisados de que se faz necessário não apenas que a graça do
Espírito nos abrande o coração interiormente, o dobre e o dirija à obediência de
Deus, como também seu auxílio, mercê da qual nos torne invencíveis contra todas
as ciladas e investidas violentas de Satanás.
Ora as formas de tentações são de fato muitas e variadas. Ora, tentações são não
só as concepções depravadas da mente a nos provocar à transgressão da lei, as quais
ou nos sugere nossa própria concupiscência, ou as excita o Diabo, mas também aquelas coisas que de sua própria natureza não são más, entretanto, se fazem tentações
por arte do Diabo, quando aos olhos de tal vulto se nos apresentam que, por sua
interposição, somos afastados de Deus, ou dele nos arredamos. E de fato estas tentações
são tanto de coisas prósperas quanto de coisas adversas. Das prósperas, coisas
tais como as riquezas, e poder, as honras que o mais das vezes de seu fulgor e da
aparência de bem que exibem embaçam a agudeza de visão dos homens e de seus
regalos os engodam, assim que se vêem cativos de tais deslumbramentos, de sorte
que, embriagados de tal encanto, a seu Deus esqueçam. Das adversas, coisas tais
como a pobreza, os opróbrios, o desprezo, as aflições e outras coisas desse gênero,
agravados pela aspereza e dificuldade dos quais percam o ânimo, alijem a confiança
e a esperança, afim, de Deus inteiramente se alienem.
Nesta sexta petição, rogamos de Deus, nosso Pai, não permita que cedamos a
uma e outra de ambas essas espécies de tentações que, ou acesas em nós mediante
nossa própria concupiscência, ou a nós propostas pela sutileza de Satanás, lutam
contra nós; ao contrário, que antes nos sustente com sua mão e nos encoraje, para
que, fortalecidos por seu poder, possamos postar-nos firmes contra todas as investidas
do maligno inimigo, quaisquer cogitações que porventura nos introduza na mente.
Então, suplicamos que tudo quanto se nos propõe que tenda para uma e outra dessas
partes convertamos ao bem, isto é, não sejamos enfatuados com as coisas prósperas,
nem sejamos abatidos com as adversas. Contudo, tampouco solicitamos aqui que de
forma alguma sintamos quaisquer tentações, pelas quais nos é sumamente indispensável
ser antes incitados, aguilhoados, espicaçados para que não nos prostremos
excessivamente acomodados e apáticos. Ora, não foi sem razão que Davi desejava
ser tentado [Sl 26.2], nem sem causa que o Senhor tenta diariamente a seus eleitos
[Gn 22.1; Dt 8.2; 13.3], castigando-os por meio da ignomínia, da pobreza, da tribulação
e outras espécies de cruz. Deus, porém tenta de um modo; Satanás, de outro
modo. Este, para que perca, danifique, confunda, precipite; Deus, porém, para que,
aos seus testando, quer prova de sua sinceridade; e, exercitando-a, solidifique sua
força, mortifique sua carne, depure-a, cauterize-a, a qual, a menos que seja desse
modo refreada, prorromperia em excessos e se ufanaria além da medida. Além disso,
Satanás ataca os desarmados e despreparados, para que, desprevenidos, os esmague;
Deus, juntamente com a tentação, provê saída favorável, de sorte que os seus
possam sofrer pacientemente tudo quanto lhes impõe [1Co 10.13; 2Pe 2.9].
Bem pouco importa se entendemos pelo termo maligno o Diabo ou o pecado. O
fato é que Satanás é o próprio inimigo que arma ciladas contra nossa vida, porém
nos armou do pecado para nossa própria ruína. Portanto, eis nossa súplica: que não
sejamos vencidos e levados de roldão por quaisquer tentações; ao contrário, nos
postemos fortes, pelo poder do Senhor, contra todas as forças adversas pelas quais
somos atacados, que é o contrário de sucumbir às tentações, de sorte que, recebidos a sua guarda e cuidados, e seguros em sua proteção, prevaleçamos invictos sobre o
pecado, a morte, as portas do inferno [Mt 16.18] e todo o reino do Diabo, que
significa ser livrado do maligno. Neste ponto, deve-se também notar, diligentemente,
que não compete a nossas próprias forças travar combate com o Diabo, tão grande
guerreiro que é, nem suportar-lhe a força e o ímpeto. De outra sorte em vão, ou
em zombaria, se rogaria de Deus o que teríamos em nós mesmos.
Obviamente, aqueles que a tal combate se preparam na confiança de si mesmos
não compreendem suficientemente com quão aguerrido e bem equipado adversário
têm que enfrentar. Então, rogamos que sejamos livrados de seu poder, como da boca
de algum leão tresloucado e furioso [1Pe 5.8], disposto a dilacerar com seus dentes
e garras, tragar com suas fauces, a não ser que o Senhor nos arrebate do meio da
morte; sabendo, contudo, ao mesmo tempo, que se o Senhor estiver presente, e lutar
por nós, ainda que nos mantenhamos calados, “em seu poder faremos proezas” [Sl
60.12; 118.16]. Que outros confiem, como haverão de querer, na própria capacidade
e forças do livre-arbítrio, os quais realmente parecem que o possuem; a nós seja
bastante que, no mero e singular poder de Deus nos mantenhamos firmes e nos
mostremos fortes.
Esta súplica, porém, compreende mais do que aparente à primeira vista, pois se
o Espírito de Deus é nosso poder para entrarmos em luta com Satanás, não poderemos
alcançar vitória antes que, cheios dele, sejamos despojados de toda fraqueza de
nossa carne. Portanto, enquanto pedimos que sejamos livrados de Satanás e do pecado,
suplicamos ser, continuamente, enriquecidos de novos eflúvios da graça de
Deus, até que, deles plenamente saturados, triunfemos sobre todo mal.
A alguns parece ser impróprio e acintoso suplicar-se a Deus que não nos induza
à tentação, quando é contrário a sua natureza tentar-nos, como o atesta Tiago [1.13].
Mas a questão já foi em parte resolvida, porque de todas as tentações pelas quais
somos vencidos nossa concupiscência é propriamente a causa [Tg 1.14], e por isso
sustêm a culpa. Tampouco, Tiago quer dizer outra coisas senão que em vão e injustamente
se transferem as transgressões para Deus, as quais somos compelidos a
imputar a nós mesmos, porque temos consciência de sermos culpados por elas. Entretanto,
isso não impede que Deus, quando assim lhe parecer bem, nos abandone a
Satanás, nos lance a um sentimento réprobo e a sórdidas paixões, e assim nos induza
às tentações, por um juízo deveras justo, embora não raro oculto, porquanto a causa
é freqüentemente escondida aos homens, a qual, no entanto, é nele certa. Do quê se
conclui não ser esta uma expressão imprópria, se formos persuadidos de que não
sem razão ele mesmo tantas vezes ameaça que estas haverão de ser provas seguras
de sua vingança, quando os réprobos são afligidos de cegueira e dureza de coração.
João Calvino
João Calvino
QUINTA PETIÇÃO: “E PERDOA NOSSAS DÍVIDAS, ASSIM COMO PERDOAMOS NOSSOS DEVEDORES”
Segue-se: “Perdoa nossas dívidas” [Mt 6.12]. Nesta petição e na próxima Cristo
enfeixou concisamente tudo quanto concerne à vida celeste, da mesma forma que,
apenas nestes dois membros, se firma o pacto espiritual que Deus estabeleceu para a
salvação de sua Igreja: “Escreverei minhas leis em seus corações e lhes serei propício
para com a iniqüidade” [Jr 31.33; 33.8]. Aqui, Cristo começa da remissão dos
pecados; então, logo em seguida, juntará a segunda graça: que Deus nos proteja pelo
poder de seu Espírito e nos sustente com seu auxílio, para que nos postemos invencíveis
contra todas as tentações.
Cristo designa de dívidas aos pecados, porque lhes devemos a pena; tampouco
poderíamos de qualquer modo satisfazê-la, a menos que fôssemos desobrigados por
esta remissão, que é um perdão de sua misericórdia gratuita, quando ele mesmo
generosamente apaga essas dívidas, não recebendo de nós nenhum pagamento; ao
contrário, satisfazendo-se em Cristo por sua própria misericórdia, o qual a si mesmo
se entregou, uma vez, em compensação [Rm 3.24]. Portanto, todos quantos, com
seus merecimentos ou com os de outros, confiam estar satisfazendo a Deus e crêem
que tais satisfações podem comprar a remissão dos pecados, de modo algum podem
chegar a conseguir a remissão gratuita e orar a Deus desta forma, não fazem outra
coisa senão firmar sua própria acusação e ratificar com seu próprio testemunho sua condenação. Se confessam devedores, a não ser que por um perdão gratuito sua
dívida seja perdoada; este perdão, porém, eles não o aceitam; antes, o recusam ao
apresentar diante de Deus seus méritos e satisfações; porque dessa forma não imploram
sua misericórdia, senão que apelam para seu juízo.
Aqueles, porém, que sonham para si perfeição que elimine a necessidade de
suplicar perdão, contam com discípulos a quem o comichão dos ouvidos impele aos
enganos, desde que fique patente que foram afastados de Cristo todos e quantos tais
discípulos adquirem para si, uma vez que, ensinando a todos a confessarem sua
culpa, a nenhum ele admite senão a pecadores; não que fomente os pecados com
afagos, mas porque sabia que os fiéis nunca se despem inteiramente dos vícios de
sua carne, de modo que não permaneçam sempre sujeitos ao juízo de Deus. Deve se,
com efeito, almejar, e também lutar afincadamente, para que, havendo-nos desincumbido
de todos os afazeres de nosso ofício, deveras nos felicitemos diante de
Deus de estarmos puros de toda mancha. Mas, visto que a Deus apraz restaurar em
nós, pouco a pouco,sua imagem, de sorte que sempre resida algo de contaminação
em nossa carne, foi necessário que o remédio não fosse de modo nenhum negligenciado.
Porque, se em função da autoridade a si dada pelo Pai, Cristo nos manda
recorrer, por todo o curso da vida, à deprecação de culpa, a quem serão toleráveis os
novos mestres, que tentam deslumbrar os olhos dos simplórios com o espectro de
inocência perfeita, de sorte que confiem poder tornar-se isentos de toda culpa? João
atesta que isso outra coisa não é senão fazer a Deus mentiroso [1Jo 1.10].
Pelo mesmo procedimento, esses malditos embusteiros dividem em duas partes
o pacto divino, no qual se contém nossa salvação; porque dos dois pontos suprimem
um, com o qual o desfazem totalmente, agindo não só de modo sacrílego, mas também
são ímpios e cruéis, porquanto cobrem de desespero as míseras almas, na verdade
pérfidos para consigo mesmos e para com os semelhantes a si, visto que se
induzem a um estado de inércia diametralmente oposto à misericórdia de Deus. O
que, porém, objetam, que ao anelarmos pela vinda do reino de Deus, ao mesmo
tempo buscamos a abolição do pecado, é totalmente pueril, visto que na primeira
parte da Oração do Senhor se nos propõe a suprema perfeição, mas aqui nossa
fraqueza. Daí, estas duas coisas se harmonizam convenientemente entre si, a saber,
que aspirando à meta não negligenciemos os remédios que nossa necessidade exige.
Finalmente pedimos que perdão nos seja facultado “como nós mesmos perdoamos
a nossos devedores” [Mt 6.12]; isto é, como perdoamos a todos aqueles que nos
fizeram algum agravo ou injúria, quer por palavra ou por ato. Não que seja prerrogativa
nossa remitir a culpa de delito e ofensa, a qual pertence a Deus só [Is 43.25].
Com efeito, esta é nossa remissão: alijar deliberadamente do coração a ira, o ódio, o desejo de vingança, e em deliberado esquecimento esmagar a lembrança das injustiças recebidas. Por esta razão, não se pode pedir de Deus a remissão dos pecados, a menos que nós mesmos perdoemos também as ofensas a todos quantos são ou foram injustos conosco. Se ao contrário retemos no coração algum ódio, meditamos e ocasionalmente cogitamos alguma represália contra alguém; mais ainda, se realmente não nos diligenciarmos por voltar ao favor de nossos inimigos, e os cativarmos com toda espécie de obséquios, e granjearmos sua estima, com esta prece suplicamos a Deus que não nos propiciea remissão dos pecados, pois estamos pedindo que ele nos faça como fazemos aos outros [Mt 7.12]. Isto é, realmente pedimos que não nos faça, a não ser que nós mesmos o façamos. Aqueles, pois, que são desta natureza, o que conseguem com sua petição, a não ser juízo mais grave? Por fim, impõe-se observar que esta condição – que Deus nos perdoe, assim como perdoamos a nossos devedores – não é adicionada porque com nosso perdão que a outros concedemos mereçamos o perdão, como se ele fosse a causa expressa. Na verdade, com esta palavra em parte o Senhor quis consolar-nos ante a fraqueza da fé, pois acrescentou isto como um sinal pelo qual sejamos persuadidos de que tão certamente nos foi por ele feita a remissão dos pecados, quão certamente estamos cônscios de que ela será por nós feita a outros, quando nosso coração está vazio de todo ódio, rancor e vingança. E além disso quis com esta nota dar a entender que ele apaga do número de seus filhos aqueles que são fáceis de vingar-se e difíceis em perdoar, se obstinam em suas inimizades; e que, guardando seu mau coração contra o próximo, pedem a Deus que sejam perdoados, enquanto eles mesmos mantêm sua ira contra os demais; para que não se atrevam a invocá-lo como Pai, conforme Cristo mesmo o declarou através de Lucas [11.4].
João Calvino
Com efeito, esta é nossa remissão: alijar deliberadamente do coração a ira, o ódio, o desejo de vingança, e em deliberado esquecimento esmagar a lembrança das injustiças recebidas. Por esta razão, não se pode pedir de Deus a remissão dos pecados, a menos que nós mesmos perdoemos também as ofensas a todos quantos são ou foram injustos conosco. Se ao contrário retemos no coração algum ódio, meditamos e ocasionalmente cogitamos alguma represália contra alguém; mais ainda, se realmente não nos diligenciarmos por voltar ao favor de nossos inimigos, e os cativarmos com toda espécie de obséquios, e granjearmos sua estima, com esta prece suplicamos a Deus que não nos propiciea remissão dos pecados, pois estamos pedindo que ele nos faça como fazemos aos outros [Mt 7.12]. Isto é, realmente pedimos que não nos faça, a não ser que nós mesmos o façamos. Aqueles, pois, que são desta natureza, o que conseguem com sua petição, a não ser juízo mais grave? Por fim, impõe-se observar que esta condição – que Deus nos perdoe, assim como perdoamos a nossos devedores – não é adicionada porque com nosso perdão que a outros concedemos mereçamos o perdão, como se ele fosse a causa expressa. Na verdade, com esta palavra em parte o Senhor quis consolar-nos ante a fraqueza da fé, pois acrescentou isto como um sinal pelo qual sejamos persuadidos de que tão certamente nos foi por ele feita a remissão dos pecados, quão certamente estamos cônscios de que ela será por nós feita a outros, quando nosso coração está vazio de todo ódio, rancor e vingança. E além disso quis com esta nota dar a entender que ele apaga do número de seus filhos aqueles que são fáceis de vingar-se e difíceis em perdoar, se obstinam em suas inimizades; e que, guardando seu mau coração contra o próximo, pedem a Deus que sejam perdoados, enquanto eles mesmos mantêm sua ira contra os demais; para que não se atrevam a invocá-lo como Pai, conforme Cristo mesmo o declarou através de Lucas [11.4].
João Calvino
QUARTA PETIÇÃO: “NOSSO PÃO DE CADA DIA DÁ-NOS HOJE”
Segue-se a segunda parte da Oração do Senhor, na qual descemos aos nossos
interesses, certamente não ao ponto que prejudique a glória de Deus, a qual, Paulo o
atesta [1Co 10.31], deve também ser contemplada no alimento e bebida, busquemos
apenas o que nos é da conveniência. Mas, já frisamos que existe esta diferença: que
vindicando para si, particularmente, as três petições referidas, Deus nos arrebata totalmente para si, para, desse modo, provarmos a piedade. Então ele admite que
atentemos também para nosso proveito, todavia, com esta lei: que procuremos algo
para nós, senão para este fim: que todos e quaisquer benefícios que nos confere
façam resplandecer sua glória, pois que nada é mais apropriado do que vivermos e
morrermos para ele [Rm 14.7, 8].
Aqui, porém, através da primeira petição desta segunda parte – “o pão nosso de
cada dia dá-nos hoje” – pedimos de Deus todas as coisas em geral de que o uso do
corpo necessita sob os elementos deste mundo [Gl 4.3], não somente com o que
sejamos alimentados e sejamos vestidos, mas também tudo quanto ele mesmo antevê
que nos conduza a que comamos nosso pão em paz. Em suma, por esta petição
nos entregamos a seu cuidado e nos confiamos a sua providência, para que nos dê
alimento, sustente e preserve. Pois o Pai boníssimo não desdenha tomar sob sua
proteção e guarda nem mesmo nosso corpo, para que a fé nos exercite nessas coisas
diminutas, enquanto dele esperamos tudo, inclusive uma simples migalha de pão e
uma gota de água. Ora, uma vez que nossa iniqüidade é tal, que sempre temos muito
mais em conta, e tomamos maior cuidado do corpo do que de nossa alma, muitos
que se atrevem a confiar sua alma a Deus não deixam, contudo, de estar preocupados
com a roupa; e se não têm sempre à mão grande abundância de vinho, trigo e
azeite, estão tremendo, crendo que lhes haverá de faltar. De tanto mais estima nos
é a sombra desta vida passageira do que aquela eterna imortalidade! Aqueles que,
porém, confiados em Deus, alijaram de vez aquela ansiedade quanto ao cuidado da
carne, ao mesmo tempo esperam dele sem detença coisas que são maiores, até mesmo
a salvação e a vida eterna. Logo, esperar de Deus aquelas coisas que, de outro
modo, nos mantêm tão profundamente ansiosos, não é um leve exercício de fé, nem
parco proveito é quando nos despimos desta falta de confiança que se apega obstinadamente
aos ossos de quase todos os homens.
Com efeito, parece-me convir bem pouco à expressão de Cristo o que alguns
filosofamacerca de pão supersubstancial. De fato, a não ser que nesta vida caduca
também atribuíssemos a Deus as funções de nutridor, a súplica seria imperfeita. A
razão que apresentam é demasiado profana; dizem que não convém aos filhos de
Deus, que devem ser espirituais, não só volvam a atenção aos cuidados terrenos,
mas que inclusive envolvem a Deus neles. Como se realmente sua bênção e favor
paterno não resplendessem também no alimento, ou tivesse escrito em vão que “a
piedade é para tudo proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de
vir!” [1Tm 4.8]. Mas, embora a remissãodos pecados de muito seja mais importante que os alimentos do corpo – o que no entanto era inferior Cristo pôs em primeiro
lugar –, para que nos conduzisse gradualmente às duas petições restantes, que são
próprias da vida celestial, no que suportou nossa lerdeza.
Ordena-se-nos, porém, pedir o pão nosso, para que estejamos contentes com a
porção que o Pai celestial se digna fornecer-nos, nem ganho procuremos alcançar
mediante meios ilícitos. Enquanto isso, deve-se sustentar que nosso se faz por título
de doação, porquanto nem nossa diligência, nem nosso labor, nem nossas mãos –
como diz Moisés [Lv 26.20; Dt 8.17, 18] – por si sós nos adquirem alguma coisa, a
menos que a bênção de Deus esteja presente. Aliás, de fato nem um mínimo sequer
nos aproveitaria abundância de pão, a não ser que o alimento se nos convertesse
divinamente. E, conseqüentemente, esta liberalidade divina é necessária não menos
para os ricos do que para os pobres, porque, de celeiros e depósitos cheios, desfaleceriam
sedentos e famintos, a menos que fruíssem de seu pão por mercê de sua
graça.
A partícula hoje, ou quotidianamente, como está no outro evangelista [Lc 11.3],
de igual modo o epíteto quotidiano, lançam um freio ao desejo imoderado pelas
coisas transitórias com que costumamos arder além da medida e às quais acrescem
outros males, porque, se se depara abundância mais ampla, afetadamente a dissipamos
em prazer, deleites, ostentação e outras modalidades de fausto. E, assim somos
instados a rogar apenas quanto é bastante para nossa necessidade, e como que para
o dia, com esta confiança: uma vez que hoje o Pai celestial nos haja alimentado, não
haverá de faltar no dia de amanhã. Portanto, por maior que seja a abundância de
coisas que nos aflua, até mesmo quando os depósitos estejam abarrotado e cheios os
celeiros, contudo, convém que sempre peçamos o pão de cada dia, porque certamente
se deve ter em mira que todo bem nada é, senão até onde, derramada seja sua
bênção, o Senhor a fecunda de incremento contínuo. Ademais, o bem que está em
nossa mão, de fato nem mesmo esse é nosso, senão até onde, a cada hora, uma a
uma, o Senhor nos prodigaliza uma porçãozinha e nos permite seu uso.
Visto que mui dificilmente a soberba dos homens se deixa persuadir disto, o
Senhor testifica haver propiciado prova singular a todos os séculos, quando alimentou
seu povo no deserto com o maná, para que nos desse a saber que não só de pão
vive o homem, mas, antes, da palavra que sai de sua boca [Dt 8.3; Mt 4.4], com o
que se indica que a vida e as forças são sustentadas unicamente por seu poder, ainda
que no-lo ministra sob instrumentos corpóreos, assim como também nos costuma
ensinar com a prova contrária, quando, sempre que lhe agrade, quebranta a força e,
como ele próprio chama, o báculo do pão, para que realmente os que comem definhem
de fome e os que bebem fiquem ressequidos de sede [Lv 26.26; Ez 4.16, 17;
14.13]. Aqueles, porém, que não contentes com o pão de cada dia, antes com avidez
desenfreada desejam ardentemente coisas infindas, ou aqueles que, fartos de sua abundância e seguros no vulto de suas riquezas, não obstante a Deus suplicam com
esta oração, outra coisa não fazem senão zombar dele. Ora, os primeiros pedem o
que não queriam que fosse obtido, aliás, o que abominam ao máximo, isto é, apenas
o pão de cada dia; e, quanto podem, disfarçam em relação a Deus o sentimento de
sua avareza, quando a verdadeira oração deve derramar diante dele toda a própria
mente e tudo quanto jaz nela escondido. Os segundos, porém, suplicam o que de
modo algum esperam dele, isto é, o que julgam já ter junto a si.
Ao chamá-lo pão nosso, certamente mais sobressai, como já dissemos, a benignidade
de Deus, a qual faz nosso o que por nenhum direito nos é devido. Contudo,
não se deve repudiar o que também abordei: que se deve designar “nosso” o que
obtemos por justo e inofensivo labor; não, porém, o que se busca com imposturas ou
rapinagens, visto que é sempre alheio tudo quanto para nós adquirimos com algum
dano alheio.
Quando pedimos, nos seja dado, significa que esse pão é uma simples e graciosa dádiva
de Deus, donde quer que nos advenha, ainda quando pareça ter-se absolutamente
alcançado por nossa arte e indústria e provido por nossas mãos, quando
meramente por sua bênção nossos labores alcançam sucesso.
João Calvino
João Calvino
TERCEIRA PETIÇÃO: “SEJA FEITA TUA VONTADE, ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU”
A terceira petição é que “a vontade de Deus seja feita na terra como é feita no
céu” [Mt 6.10]. Isto, ainda que dependa de seu reino, nem dele se pode dissociar,
contudo, não é em vão que se adiciona separadamente, em razão de nossa obtusidade,
que não se apreende fácil e prontamente o que seja Deus reinar no mundo.
Portanto, não será absurdo tomar isto explicativamente: então Deus haverá de ser
Rei no mundo, quando todos se sujeitarem a sua vontade. Com efeito, aqui não se
trata de sua vontade secreta, pela qual a tudo regula e destina a seu fim. Pois ainda
que Satanás e os homens sejam tumultuosamente impelidos contra ele, em seu incompreensível
conselho, no entanto, sabe não só aparar-lhes os ataques, como também
de tal modo os dispões que, por meio deles, faça o que precisamente decretou.
Mas aqui se denota a outra vontade de Deus, isto é, aquela a que corresponde a
obediência voluntária, e por isso o céu é expressamente comparado à terra, porque
os anjos, como se diz no Salmo, obedecem espontaneamente a Deus e se dispõem a cumprir-lhe as ordens[Sl 103.20]. Portanto, se nos ordena que anelemos que, assim
como no céu nada se faz sem ser pelo arbítrio de Deus, e placidamente os anjos
estão munidos de toda retidão, assim também, aniquilada toda contumácia e impiedade,
a terra esteja sujeita ao governo desta ordem. Certamente, ao pedir isto renunciamos
aos apetites e desejos de nossa carne; porquanto, a não ser que alguém
resigne e submeta seus sentimentos a sua vontade,quanto em si está, se opõe, uma
vez que de nós nada procede senão o que é vicioso.
E de novo, com esta prece, somos induzidos à negação de nós mesmos, para que
Deus nos reja conforme seu arbítrio. Não só isto, mas também que, nossa mente e
coração reduzidos a nada, Deus crie em nós mente nova e coração novo, para que
não sintamos em nós qualquer frêmito de desejo senão a pura anuência à sua vontade.
Em suma, que nós mesmos não queiramos algo propriamente nosso; ao contrário
disso, que seu Espírito nos governe o coração para que, nos ensinando ele interiormente,
aprendamos a amar as coisas que lhe são deleitáveis; contudo, odiando
as que lhe desagradam. Do quê também procede isto: que todos e quantos sentimentos
se opõe mà sua vontade, a esses torne-os vãos e sem efeito.
Eis, pois, os primeiros três tópicos da Oração do Senhor, em pronunciando os
quais só a glória de Deus convêm ter diante dos olhos, pondo de parte a consideração
por nós mesmos, nem contemplado qualquer proveito nosso, o qual, embora nos
provenha daí amplamente, contudo, aqui não deve ser buscado por nós. Mas, todas
estas coisas, embora não as cogitando, nem as desejando, nem as pedindo, não
obstante hajam de ocorrer a seu tempo, no entanto devem ser por nós desejadas e
suplicadas. E fazer isto não é de forma alguma pouco, como por esse meio nos
atestemos e professemos ser servos e filhos de Deus, quanto em nós está, nos esforçando
e verdadeira e profundamente nos devotando à sua honra, o que se deve ao
Senhor e Pai. Daí, aqueles que não oram com esse sentimento e empenho de promover
a glória de Deus, que o nome de Deus seja santificado, que seu reino venha, que
sua vontade seja feita, esses nem mesmo devem ser tidos entre os filhos e servos de
Deus; e como todas essas coisas lhes acontecerão a contragosto seu, assim redundarão
em confusão e ruína.
João Calvino
João Calvino
SEGUNDA PETIÇÃO: “VENHA TEU REINO”
A segunda petição consiste em que o reino de Deus venha [Mt 6.10]; que, embora
ela não contenha nada de novo, entretanto, não sem razão se distingue da primeira,
porquanto, se considerarmos nosso torpor na maior de todas as coisas, faz-se
necessário inculcar em mais palavras o que por si só deveria ser sobejamente conhecido.
Portanto, depois que sermos incitados a rogar a Deus que ponha em sujeição,
e por fim aniquile completamente a tudo quanto causa mancha em seu sacro nome,
então acrescenta-se outra petição, semelhante e quase a mesma: que seu reino venha.
Mas, ainda que a definição deste reino já foi dada por nós previamente, agora a
repito de modo sucinto: Deus reina onde os homens, tanto pela negação de si mesmos,
quanto pelo desprezo do mundo e da vida terrena, se submetem a sua justiça a
fim de aspiraremà vida celestial.
Daí, este reino consiste de duas partes: uma, que Deus, mediante o poder de seu
Espírito, corrija todos os desejos depravados da carne, os quais pelejam contra ele
em batalhões; então, que conforme todos nossos sentimentos à obediência de sua
soberania. E assim nesta oração não são outros que mantêm a ordem legítima, senão
aqueles que começam de si próprios, isto é, que se purguem de todas as mazelas que
perturbam a tranqüila condição do reino de Deus e infectam sua pureza. Ora, visto
que a Palavra de Deus é como que seu cetro régio, aqui se nos ordena a que oremos
para que as mentes e corações de todos se lhe sujeitem à voluntária obediência, o
que acontece quando, pela secreta inspiração do Espírito, haja manifestado a eficácia
de sua Palavra, para que tenha a preeminência no grau de honra que merece. Em
seguida a isso, convém descer aos ímpios, os quais, obstinadamente e com desesperado
furor, lhe resistem à autoridade.
Portanto, Deus erige seu reino abatendo ao mundo todo, contudo, de modos
diversos, porquanto de uns doma o desenfreamento; de outros quebranta o indomável orgulho. Deve-se almejar que aconteça cada dia que de todos os rincões do
mundo Deus junte a si ajunte suas igrejas, as propague e as faça aumentar em número,
as sature de suas dádivas, estabeleça nelas ordem legítima; em contraposição,
que prostre a todos os inimigos da sã doutrina e religião; lhes dissipe os conselhos;
lance abaixo seus planos. Do quê transparece que não é debalde que se nos preceitua
o esforço de progresso diário, porquanto nunca as coisas humanas procedem tão
bem que, dissipadas e purgadas a sordidez dos vícios, a integridade floresça e viceje
plenamente. Sua plenitude, porém, delonga-se até à vinda final de Cristo, quando,
segundo o ensino de Paulo, “Deus será tudo em todas as coisas” [1Co 15.28].
E assim, esta segunda petição deve retrair-nos das corrupções do mundo, as
quais nos separam de Deus, de sorte que dentro de nós não medre seu reino; ao
mesmo tempo, deve inflamar-se o zelo pela mortificação da carne; finalmente, nos
ensina a suportar a cruz, quando deste modo Deus quer que seu reino seja propagado.
E não se deve ter por injusto que o homem exterior se corrompa, conquanto que
o interior se renove [2Co 4.16]. Pois esta é a condição do reino de Deus: que enquanto
nos submetemos à sua justiça, nos tornemos participantes de sua glória! Isto
se realiza quando sua luz e sua verdade sempre resplandeçam de novos incrementos,
mercê das quais as trevas e enganos de Satanás e seu reino desvanecem, se
extinguem e perecem; aos seus protege, com o auxílio de seu Espírito, os dirige à
retidão e os firma à perseverança; frustra, porém, as ímpias conspirações dos inimigos,
dissipa seus ardis e embustes, se opõe à sua malignidade, reprime a obstinação,
até que, por fim, dê cabo do Anticristo com o Espírito de sua boca e destrua toda
impiedade com a esplendor de sua vinda [2Ts 2.8].
João Calvino
João Calvino
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
PRIMEIRA PETIÇÃO: “SANTIFICADO SEJA TEU NOME”
A primeira petição é que o nome de Deus seja santificado [Mt 6.9], necessidade
que deveria trazer-nos grande vergonha. Pois, que há de mais indigno do que nossa
ingratidão, em parte, tolde a glória de Deus, em parte nossa malignidade, quanto
possa em si ofuscá-la nossa petulância e furioso despudoramento? Ainda que com
sua sacrílega devassidão todos os ímpios tentem destruí-la, não obstante resplandece
a santidade do nome de Deus. Não é sem causa que o Profeta exclama: “Segundo
é teu nome, ó Deus, assim teu louvor, até os confins da terra” [Sl 48.10]. Ora, onde
quer que Deus se haja conhecido, não pode ocorrer que não se manifestem suas
virtudes, poder, bondade, sabedoria, justiça, misericórdia, verdade, que não incitem
nossa admiração e não nos arrebatem à celebração de seu louvor. Portanto, uma vez
que de forma tão ultrajante sua santidade é subtraída da terra, não conseguimos
mantê-la como convém, se nos manda que pelo menos tenhamos o cuidado de rogar
a Deus que a mantenha.
A síntese desta petição consiste em que ansiemos por que seja dada a Deus sua
honra, da qual é digno, de sorte que os homens nunca falem ou pensem dele senão
com reverência; ao que se opõe a profanação que no mundo foi sempre sobremaneira
comum, como grassa ainda hoje. E daqui a necessidade desta petição, a qual seria
supérflua se entre nós não vigorasse ao menos modesta piedade. Porque, se o nome
de Deus se revestir de santidade, exaltado e glorificado como convém, quando é
separado de todos os demais nomes e respira perfeita glória, aqui se nos ordena não
apenas pedir que Deus defenda esse sacro nome de todo desprezo e ignomínia,
como também que todo o gênero humano se sujeite à sua reverência.
Ora, visto que Deus se nos manifeste, em parte, em seu ensino, em parte por meio de suas obras, ele não é santificado por nós de outro modo senão se em ambos esses aspectos lhe atribuamos o que é seu, e assim abracemos tudo quanto dele procede. Tampouco seu louvor em nossos lábios obtêm menos sua severidade que sua clemência, quando na diversidade multifária das obras ele esculpiu marcas de sua glória, aptas a forçar todas as línguas, com razão, a que expressem a confissão de louvor. Assim acontecerá que a Escritura terá entre nós justa autoridade, não que qualquer evento impeça que se bendiga oque Deus merece em todo o curso do governo do mundo. Em contrapartida, esta petição também se propõe a que pereça e seja aniquilada toda impiedade que macula este santo nome, tudo quanto tolde esta santificação, ou o diminue, quer injúrias ou zombarias, para longe se vão, e, enquanto Deus reprime todos os sacrilégios, daqui mais e mais lhe resplenda a majestade.
João Calvino
Ora, visto que Deus se nos manifeste, em parte, em seu ensino, em parte por meio de suas obras, ele não é santificado por nós de outro modo senão se em ambos esses aspectos lhe atribuamos o que é seu, e assim abracemos tudo quanto dele procede. Tampouco seu louvor em nossos lábios obtêm menos sua severidade que sua clemência, quando na diversidade multifária das obras ele esculpiu marcas de sua glória, aptas a forçar todas as línguas, com razão, a que expressem a confissão de louvor. Assim acontecerá que a Escritura terá entre nós justa autoridade, não que qualquer evento impeça que se bendiga oque Deus merece em todo o curso do governo do mundo. Em contrapartida, esta petição também se propõe a que pereça e seja aniquilada toda impiedade que macula este santo nome, tudo quanto tolde esta santificação, ou o diminue, quer injúrias ou zombarias, para longe se vão, e, enquanto Deus reprime todos os sacrilégios, daqui mais e mais lhe resplenda a majestade.
João Calvino
O CONSOLADOR SENTIDO DA CLÁUSULA “QUE ESTÁS NOS CÉUS”, NÃO INDICANDO LOCALIZAÇÃO OU LIMITAÇÃO EM DEUS, MAS REALÇANDO-LHE A MAJESTADE E SOBERANIA
Acrescenta-se que ele está nos céus. Daqui não se deve raciocinar precipitadamente
que ele está limitado à circunferência do céu, como se estivesse recluso e
circunscrito em um recinto reservado. Pois que também Salomão confessa que os
céus dos céus não o podem conter [1Rs 8.27]. E ele mesmo, por intermédio do
Profeta, diz que o céu é seu trono, mas a terra é o estrado de seus pés [Is 66.1; At
7.49]; obviamente, querendo dizer com isso que não se confina a alguma região
determinada; ao contrário, ele está difundido em tudo. Contudo, visto que, dada a
sua obtusidade, nossa mente não podia, de outra sorte, conceber sua inenarrável
glória, ela nos foi designada pelo termo céu, do que nada mais augusto ou mais
pleno de majestade nos pode vir à contemplação. Enquanto, pois, onde quer que
nossos sentidos apreendem qualquer coisa, aí costumam fixá-la, Deus é posto além
de todo e qualquer lugar; de sorte que, quando queremos buscá-lo, somos elevados
acima de todo sentido do corpo e da alma. Então, com esta forma de expressão, ele
é elevado acima de toda possibilidade de corrupção ou mudança. Finalmente, denota-se
que ele abraça e sustêm todo o mundo e com seu poder o rege. Portanto, isto é
exatamente como se ele fosse definido como se fosse de magnitude ou sublimidade
infinita, de essência incompreensível, de poder imenso, de imortalidade eterna. Quando,
porém, ouvimos isto, nosso pensamento deve elevar-nos mais alto, uma vez que
está a tratar-se de Deus; tampouco o imaginemos como fosse terreno ou carnal, nem
o meçamos por nossas acanhadas medidas, nem conformemos sua vontade a nossos
afetos. Ao mesmo tempo, a confiança nele deve cobrar-nos ânimo, de cuja providência
e poder entendemos serem governados céu e terra.
A conclusão, pois, é que sob o termo Pai se nos propõe aquele Deus que em
Cristo nos apareceu em sua própria imagem, para que seja invocado por uma fé
inabalável; tampouco o termo familiar Pai é só para engendrar confiança, mas também
vale para que as mentes sejam sustentadas, a fim de que não sejam arrastadas a
deuses duvidosos ou fictícios; ao contrário, que do Filho Unigênito se elevem ao
único Pai dos anjos e da Igreja. Em segundo lugar, visto que seu trono está estabelecido nos céus, se nos adverte que, já que ele governa o mundo, de forma alguma nos
aproximaremos dele em vão, já que espontaneamente se apresenta e oferece a nós. O Apóstolo afirma que, “é necessário que aquele que se aproxima Deus creia
que ele existe, e que é o galardoador dos que o buscam” [Hb 11.6]. Cristo, neste
lugar, atribui ambas essas coisas a seu Pai, para que nossa fé se assente nele; então,
que estejamos firmemente persuadidos de que nossa salvação não é negligenciada
por ele, já que se digna até mesmo de estender-nos sua providência. Com rudimentos
como esses, Paulo nos prepara para que oremos corretamente, pois antes que
prescreva que nossas petições se façam conhecidas diante de Deus, ele prefacia a
imposição nestes termos: “Seja vossa eqüidade notória a todos os homens; perto
está o Senhor” [Fp 4.5, 6]. Do quê se faz claro que suas petições revolvem em sua
mente, hesitante e confusamente, os que não têm isto firmemente estabelecido: “Os
olhos de Deus estão sobre os justos” [Sl 34.15; 1Pe 3.12].
João Calvino
João Calvino
A ORAÇÃO, AINDA QUE SEM FRONTEIRAS VISE A TODOS, NADA IMPEDE, COMO AUXÍLIO A INDIGENTES, QUE SE FAÇA EM FAVOR DE ALGUNS, MAIS ESPECIFICAMENTE, ATÉ EM NOSSO PRÓPRIO FAVOR
Contudo, tampouco isso impede que seja lícito orar, especialmente, não só em
nosso favor, mas também em favor de outros; contudo, desde que a mente não se
descuide da visão desta comunhão, muito menos dela se desvie; ao contrário, tudo
deve convergir para este ponto. Ora, ainda que as orações sejam concebidas em
moldes individuais, porquanto para este escopo se dirigem, elas não deixam de
revestir-se de teor universal. Tudo isto se pode entender facilmente com uma ilustração.
É geral o mandado de Deus quanto a aliviar-se a penúria de todos os pobres,
e de fato que se obedeçam a isto os que, para esse fim, socorrem a indigência daqueles
que sabem ou vêem sofrer, ainda que omitam a muitos que são premidos de não
menos dura necessidade, ou porque não possam conhecê-los a todos, ou porque não
possam atender a todos. Nesta medida, aqueles que formulam orações particulares
desta natureza não resistem à vontade de Deus, tendo em mira, e ponderando esta
comum comunidade da Igreja, com as quais, com palavras particulares, porém com
um afeto comum e público, recomendam a Deus a si mesmos ou aos outros, cuja
necessidade ele quis que conheçam mais de perto.
Entretanto, de fato nem tudo é semelhante na oração e na distribuição de recursos,
pois a benignidade de dar assistência só pode ser exercida em favor daqueles
cuja penúria nos foi posta à vista; mas pela oração é possível ajudar até aos mais
estranhos e mais desconhecidos, por mais longa seja a distância pela qual estejam afastados de nós. Mas isto se dá através desta fórmula geral de oração em que estão
contidos todos os filhos de Deus, entre os quais estão também esses. A isto se pode
atribuir o fato de Paulo exortar aos fiéis de seu tempo a que, em toda parte, elevem
mãos puras sem contenda [1Tm 2.8]; porquanto, advertindo que a dissenção fecha a
porta às orações, ele ordena que seus rogos sejam unânimes, em toda paz e amizade.
João Calvino
João Calvino
AO DIZER-SE “PAI NOSSO”, SIGNIFICA QUE ELE É O PAI DE TODOS, RAZÃO PELA QUAL DEVEMOS ORAR AFETUOSAMENTE, PORÉM, DE MODO ESPECIAL, PELOS DA FAMÍLIA DA FÉ
O que aqui, porém, não se nos ensina é que cada em particular o chame seu Pai,
mas, antes, que todos o chamemos em comum nosso Pai, sendo com isso advertidos
de quão grande afeto de fraterno amor convém que exista entre nós, nós que com o
mesmo direito de misericórdia e graciosa liberalidade desse Pai, somos igualmente
filhos. Ora, se o Pai é um só e único, comum a todos [Mt 23.9], do qual provém
absolutamente tudo quanto de bom nos pode suceder, não deve haver nada separado
entre nós, que não estejamos preparados, comunicando uns aos outros com grande
alegria de espírito quanto exige a necessidade. Ora, se estamos preparados como se
deve, a assistir-nos e ajudar-nos, mutuamente, não há nada em que mais possamos
beneficiar aos irmãos do que recomendando-os ao cuidado e providência do Pai
boníssimo, o qual, sendo propício e favorável, nada mais, absolutamente, se pode
desejar. Obviamente, isto mesmo também devemos a nosso Pai. Porque, assim como tantos quantos amam verdadeiramente e de coração a algum pai de família, com
amor e benevolência abraçam ao mesmo tempo a toda sua casa; na mesma medida
nós, se com o zelo e afeto amamos a este Pai celestial e desejamos servi-lo, é necessário
que mostremos afeto e amor a seu povo, sua família, enfim, sua herança, a qual
ele tem tão grandemente honrado, e à qual denominou a plenitude de seu Filho
Unigênito [Ef 1.23].
Portanto, que o homem cristão conforme suas orações a esta regra: que elas
sejam comuns e que ele abrace a todos os que são seus irmãos em Cristo. Não
somente aqueles que vê como tais e reconhece no presente, mas a todos os homens
que agem sobre a terra, acerca dos quais está além do conhecimento de que Deus
assim o determinou, exceto que desejar-lhes e esperar-lhes o melhor não é menos
piedoso que humano; se bem que, acima dos demais, importa que sejamos propensos
de certo afeto singular para com os da família da fé, aos quais o Apóstolo no-los
recomendou, de modo especial [Gl 6.10]. Em síntese, assim devem ser todas as
orações: que tenham sempre os olhos postos naquela comunhão que nosso Senhor
estabeleceu em seu reino e sua casa.
João Calvino
João Calvino
AO DIZERMOS “PAI NOSSO”, DEUS NOS ASSEGURA SEU AMOR PATERNO E SUA ACOLHIDA GRACIOSA, A DESPEITO DE NOSSO PECADO E VILEZA
Tampouco aleguemos que nossos pecados nos acusam e nos fazem apresentar nos
diante de seu acatamento, os quais, ainda que ele seja o Pai clemente e terno,
contudo o irritamos com nossas ofensas diariamente. Ora, se entre os homens o
filho não poderia ter nenhum patrono melhor para pleitear sua causa junto ao pai,
nenhum advogado melhor que pudesse reconciliá-lo com ele e recobrar-lhe o favor
perdido, do que ele mesmo, suplicante e deprimido, reconhecendo a própria culpa,
implore a misericórdia do pai; pois então porventura podem as entranhas paternas
dissimular que se comovem diante de tais orações, justamente como esse “Pai de
misericórdias e Deus de toda consolação” haverá de fazer? [2Co 1.3]. Quando a isto
especialmente nos convida e insta, ouvidos às lágrimas e gemidos de seus filhos que
a ele suplicam, porventura não atenderá, antes que a quaisquer súplicas de outros, a
cujo auxílio por isso acorrem apavorados, não sem algum sinal de desespero, visto
que não confiam na compaixão e clemência de seu Pai?
Esta exuberância da compaixão paterna nos é pintada e representada na parábola [Lc 15.11-32] em que ao filho que se alheara dele, que os haveres lhe havia
esbanjado dissolutamente, que contra ele gravemente transgredirá de todos os modos,
o pai o recebe de braços abertos, nem mesmo esperando que com palavras
rogue perdão; pelo contrário, ele próprio se antecipa, reconhecendo-o ao longe de
regresso, corre-lhe deliberadamente ao encontro e o consola recebendo-o em seu
favor. Pois, propondo este exemplo de tão grande compaixão a constatar-se no homem,
ele quis ensinar-nos que devemos esperar dele liberalidade muito maior, não
apenas como um Pai, mas como sobremaneira o melhor e mais clemente de todos os
pais, desde que, embora filhos ingratos, rebeldes e réprobos, entretanto nos lançando
à sua misericórdia.
E se somos cristãos, para que mais segura fizesse a certeza de que ele nos é um
Pai desse gênero, quis ser chamado não apenas Pai, mas expressamente Pai nosso,
como se tratássemos com ele desta maneira: “Ó Pai, que de tão grande piedade és
dotado para com teus filhos, de tão grande prontidão para perdoar, nós, teus filhos,
te invocamos e suplicamos, seguros e francamente persuadidos de que de não nutres
outro sentimento para conosco, senão paterno, por mais que sejamos indignos de
um Pai como tal. Visto, porém, que as estreitezas de nosso coração não abarcam tão
grande imensidade de favor, Cristo nos é não meramente o penhor e a garantia de
nossa adoção, mas também por testemunha dessa mesma adoção que o Espírito nos
dá, por meio de quem é próprio clamar, com voz desimpedida e sonora: Abba, Pai
[Rm 8.15; Gl 4.16]. Daí, sempre que nos embaraçar alguma hesitação, lembremo nos
de pedir dele que, corrigida nossa falta de ânimo, esse mesmo Espírito de firmeza
de alma nos seja posto adiante como guia para orarmos ousadamente.
João Calvino
João Calvino
PAI NOSSO, QUE ESTÁS NO CÉU
O PROFUNDO SIGNIFICADO DA INVOCAÇÃO DE DEUS COMO “NOSSO PAI”
Primeiro, no próprio limiar ocorre o que já dissemos previamente: toda oração deve ser oferecida por nós a Deus não de outra forma senão no nome de Cristo, visto que em nenhum outro nome ela pode ser-lhe recomendada. Ora, desde que a Deus chamamos Pai, fazendo-o sem dúvida antepomos o nome de Cristo, pois com que confiança de outra sorte alguém chamaria a Deus de Pai? Quem temeriamente prorromperia a isto, usurpando a honra do Filho de Deus, salvo se em Cristo fôssemos adotados por filhos da graça, Cristo que, sendo o verdadeiro Filho, nos foi dado, ele mesmo, por Irmão, para que o que ele mesmo tem por natureza se faça nosso por beneficio da adoção, se com fé segura abraçamos tão grande benevolência? Como diz João: “a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem em seu nome” [Jo 1.12]. Por isso, Deus não só se denomina nosso Pai, mas também quer por nós ser assim chamado, com essa doçura tão imensa de um nome que elimina de nós toda incerteza, uma vez que nenhum afeto maior de amor se pode achar em outra parte que não seja no Pai. Portanto, Deus não pôde comprovar com nenhuma prova mais segura seu imenso amor para conosco além do fato de que somos chamados filhos de Deus [1Jo 3.1]. Seu amor, porém, é infinitamente maior e mais excelente para conosco do que todo o amorde nossos pais, quanto ele mesmo supera em bondade e misericórdia a todos os homens; de modo que, se todos quantos, pois, há na terra, despojados de todo sentimento de paternal piedade, desamparassem aos filhos, ele jamais falharia para conosco [Sl 27.10; Is 63.16], porque não pode negar a si mesmo [2Tm 2.13]. Ora, nós temos sua promessa: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” [Mt 7.11]. Igualmente, no Profeta: “Porventura pode a mãe esquecer-se dos filhos? E se ela os esquecer, contudo eu não me esquecerei de ti” [Is 49.15]. Como não se pode confiar um filho à guarda de um homem estranho e desconhecido, sem que ao mesmo tempo se haja de queixar-se ou da crueza ou da improbidade do pai, assim, uma vez sendo nós seus filhos, não podemos buscar ajuda de outra parte senão dele mesmo, senão desonrando e infamando-o como pobre e miserável, ou como austero e cruel.
João Calvino
Primeiro, no próprio limiar ocorre o que já dissemos previamente: toda oração deve ser oferecida por nós a Deus não de outra forma senão no nome de Cristo, visto que em nenhum outro nome ela pode ser-lhe recomendada. Ora, desde que a Deus chamamos Pai, fazendo-o sem dúvida antepomos o nome de Cristo, pois com que confiança de outra sorte alguém chamaria a Deus de Pai? Quem temeriamente prorromperia a isto, usurpando a honra do Filho de Deus, salvo se em Cristo fôssemos adotados por filhos da graça, Cristo que, sendo o verdadeiro Filho, nos foi dado, ele mesmo, por Irmão, para que o que ele mesmo tem por natureza se faça nosso por beneficio da adoção, se com fé segura abraçamos tão grande benevolência? Como diz João: “a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que crêem em seu nome” [Jo 1.12]. Por isso, Deus não só se denomina nosso Pai, mas também quer por nós ser assim chamado, com essa doçura tão imensa de um nome que elimina de nós toda incerteza, uma vez que nenhum afeto maior de amor se pode achar em outra parte que não seja no Pai. Portanto, Deus não pôde comprovar com nenhuma prova mais segura seu imenso amor para conosco além do fato de que somos chamados filhos de Deus [1Jo 3.1]. Seu amor, porém, é infinitamente maior e mais excelente para conosco do que todo o amorde nossos pais, quanto ele mesmo supera em bondade e misericórdia a todos os homens; de modo que, se todos quantos, pois, há na terra, despojados de todo sentimento de paternal piedade, desamparassem aos filhos, ele jamais falharia para conosco [Sl 27.10; Is 63.16], porque não pode negar a si mesmo [2Tm 2.13]. Ora, nós temos sua promessa: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará boas coisas aos que lhe pedirem?” [Mt 7.11]. Igualmente, no Profeta: “Porventura pode a mãe esquecer-se dos filhos? E se ela os esquecer, contudo eu não me esquecerei de ti” [Is 49.15]. Como não se pode confiar um filho à guarda de um homem estranho e desconhecido, sem que ao mesmo tempo se haja de queixar-se ou da crueza ou da improbidade do pai, assim, uma vez sendo nós seus filhos, não podemos buscar ajuda de outra parte senão dele mesmo, senão desonrando e infamando-o como pobre e miserável, ou como austero e cruel.
João Calvino
DIVISÃO E SENTIDO GERAL DA ORAÇÃO DO SENHOR
Esta fórmula ou regra de orar é constituída de seis petições. Ora, a razão que me
leva a não dividi-la em sete artigos, como fazem alguns, é que o evangelho, ao
dizer, “não nos deixe cair em tentação, mas livra-nos do mal”, liga dois membros
para fazer uma só petição; ao contrário, “socorre-nos em nossa debilidade e não nos
deixes cair”. Conosco estão também de acordo antigos escritores da igreja;300 de
sorte que, agora, o que em Mateus foi adicionado em sétimo lugar deve ser exegeticamente
atribuído à sexta petição.
Mas, ainda que toda a oração seja de tal natureza que por toda parte deva-se ter
em primeiro plano o motivo da glória de Deus, contudo as primeiras três peticões se
destinaram particularmente à glória de Deus, a qual, nelas, temos unicamente que levar em conta, sem ter absolutamente em nenhuma consideração nosso proveito.
As três petições restantes tratam do cuidado de nós mesmos e foram assinaladas
propriamente àquelas coisas que se devem suplicar em virtude de nossa necessidade.
Por exemplo, quando rogamos que o nome de Deus seja santificado, visto que
Deus quer pôr à prova se porventura se é amado e cultuado por nós desinteressadamente,
ou pela esperança de recompensa, então nossa vantagem não deve estar em
cogitação; pelo contrário, sua glória deve estar posta diante de nós, para que, de
olhos fixos, só contemplemos a ela. Tampouco devemos deixar-nos afetar de outro
modo nas orações restantes desta natureza.
Certamente disto se deduz um grande proveito para nós; porque, enquanto seu
nome é dessa forma santificado como pedimos, assim também, por sua vez, se opera
nossa santificação. Nossos olhos, porém, como já foi dito, devem estar fechados
para proveito dessa ordem, e de certo modo se fazerem cegos, para que não atentem
absolutamente para o mesmo. De sorte que, se fosse cortada toda esperança de nosso
bem particular, contudo, esta santificação, e outras coisas que dizem respeito à
glória de Deus, não deixam de ser por nós almejadas e suplicadas nas orações.
Como se observa nos exemplos de Moisés e de Paulo [Ex 32.32; Rm 9.3], aos quais
não foi penoso desviar de sua própria pessoa a mente e os olhos, e com zelo veemente
e inflamado, pedir sua própria perdição, para que, até mesmo com dano próprio,
pudessem promover a glória e o reino de Deus. Por outro lado, quando pedimos que
nos seja dado nosso pão de cada dia, ainda que desejemos o que é de nosso interesse,
contudo, aqui também, devemos buscar especialmente a glória de Deus, para
que de fato nada peçamos, a não ser o que redunde para sua glória.
Agora avancemos para com a própria exposição da Oração do Senhor.
João Calvino
João Calvino
A ORAÇÃO DO SENHOR, OU PAI NOSSO, É EXPRESSÃO DA MISERICÓRDIA DIVINA EM PROVER-NOS FORMA MODELAR DE ORAÇÃO
Agora se faz necessário aprender noção de orar não só mais segura, mas também
a própria forma, isto é, aquela que o Pai celestial nos ensinou através de seu
dileto Filho [Mt 6.9-13; Lc 11.2-4], onde se pode perceber sua imensa bondade e benevolência. Ora, além de advertir-nos e insistir conosco que o devemos buscar
em todas as nossas necessidades, assim como os filhos costumam refugiar-se na
proteção dos pais sempre que são afligidos de qualquer ansiedade, vendo que de
fato não podíamos sequer entender quão profunda é nossa necessidade e miséria,
nem tampouco o haveríamos de suplicar que fosse de nosso proveito, também atendeu
a esta nossa ignorância e o que faltava à nossa capacidade, e de si mesmo supriu
tudo o que nos faltava. Pois nos prescreveu uma fórmula, pela qual, como em uma
tabela, nos propôs tudo quanto dele é licito buscar, tudo quanto conduz a nosso
bem-estar, tudo quanto é necessário suplicar.
Desta sua benignidade percebemos grande fruto de consolação, porque compreendemos
que não lhe suplicamos nada que seja ilícito, nada que seja estranho ou
inoportuno, enfim, nada que não lhe seja aceitável, porquanto estamos rogando quase
que de sua própria boca. Como visse a imperícia dos homens na apresentação de
seus rogos a Deus, os quais, se concedidos, muitas vezes lhes seria prejudicial,
Platão declara que a melhor forma de orar é esta, apropriada de um poeta antigo: “Ó
Rei Júpiter, confere-nos as coisas melhores, quer as desejemos, quer não; as coisas
más, porém, ordena que fiquem longe de nós, ainda quando as peçamos. E esse
homem, na verdade pagão, nisto é sábio, porque sentencia quão perigoso é buscar
do Senhor o que nossa cabeça haja ditado; ao mesmo tempo, põe à mostra nossa
infelicidade, visto que, na realidade, nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem
grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm
8.26]. Em quão maior apreço merece ser julgado entre nós este privilégio, quando o
Unigênito Filho de Deus nos sugere à boca palavras que desvencilhem nossa mente
de toda vacilação!
João Calvino
João Calvino
AS ORAÇÕES PÚBLICAS DEVEM SER INTELIGÍVEIS; PORTANTO, NA LÍNGUA FALADA PELO POVO
Daqui, fica também inteiramente claro que as orações públicas devem ser formuladas
não em grego entre os latinos, nem em latim entre os franceses ou ingleses,
como até aqui se tem feito a cada passo, mas na linguagem popular, para que as
mesmas sejam generalizadamente entendidas por toda a assembléia, uma vez que,
na verdade, é indispensável que isso seja feito para edificação de toda a Igreja, à
qual, absolutamente, nenhum fruto advém além de um som não compreensível. Esses,
de fato, entre os quais nenhuma consideração há nem de caridade, nem de humanidade, deviam ser movidos um mínimo sequer, ao menos pela autoridade de
Paulo, cujas palavras estão mui longe de ser ambíguas. “De outra maneira”, diz ele,
“se bendisseres com o espírito, como dirá o que ocupa o lugar de indouto o amém,
sobre tua ação de graças? Porque realmente tu dás bem as graças, mas o outro não é
edificado” [1Co 14.16, 17].
Quem, pois, ficará surpreso ante a desenfreada licenciosidade que predomina
entre os papistas, os quais, contra a manifesta proibição do Apóstolo não temem
cantar em língua estranha o que nem sequer eles mesmos muitas vezes entendem? Mas, o que devemos realmente fazer, Paulo o prescreve: “Que farei, pois?”, diz ele,
“orarei com o Espírito, orarei também com o entendimento; salmodiarei com o Espírito,
salmodiarei também com o entendimento” [1Co 14.15]. Com o termo Espírito
ele tem em mente o singular dom de línguas, dotados do qual alguns abusavam,
quando o separam da mente, isto é, do entendimento. Concluamos, pois, que é impossível,
em se tratando da oração pública ou privada, que a língua sem o coração
não desagrade a Deus sobremaneira;298 além disso, a mente deve ser incitada com
veemência com o que pensa e ir muito mais longe supere do que tudo o que a língua
pode exprimir verbalmente; finalmente, que de fato a língua não é necessária à
oração particular, a não ser até onde o entendimento é insuficiente para elevar-se
por si próprio, ou com a veemência da incitação force a língua a falar. Ora, embora
as melhores orações às vezes necessitem da palavra, contudo, amiúde, quando o
afeto do coração está muito aceso, a língua se solta e igualmente os demais membros;
e isto sem pretensão alguma, mas espontaneamente. Obviamente, daí esse
sussurrar indefinido de Ana [1Sm 1.13], cujo certo símile os santos experimentam
em si constantemente, quando prorrompem em palavras abruptas e entrecortadas.
Entretanto, observam-se costumeiramente expressões do corpo no orar, a saber,
genuflexão e descobrir a cabeça, são exercícios mercê dos quais tentamos alçar-nos
a maior veneração de Deus.
João Calvino
João Calvino
PROPRIEDADE E REQUISITOS DO CANTO NA IGREJA
No entanto é também preciso abordar de passagem o costume de cantar na igreja,
não só como evidência muito antiga, mas também esteve em uso nos dias dos
apóstolos, o que destas palavras de Paulo é lícito concluir: “Cantarei com o espírito,
mas também cantarei com o entendimento” [1Co 14.15]. Igualmente, aos Colossenses:
“Ensinando e admoestando-vos mutuamente com hinos, salmos e cânticos espirituais,
cantando ao Senhor com gratidão em vossos corações” [Cl 3.16]. Ora, na
primeira dessas passagens ele preceitua que se deve cantar com a voz e com o coração;
na segunda, recomenda cânticos espirituais com os quais os piedosos se edificam
mutuamente.
Contudo, que esse costume não era universal o comprova Agostinho, o qual menciona que a igreja de Milão começou a cantar sob Ambrósio, quando Justina, mãe de Valentiniano, rugia furiosamente contra a fé ortodoxa, e geralmente o povo era mais assíduo em vigília. Mais tarde as demais igrejas ocidentais anuíram ao costume. Mas, ele disse um pouco antes que este costume proviera das igrejas orientais. No livro II das Refutações também indica que em seu tempo essa prática foi recebida na África. “Com efeito”, diz ele, “um certo Hilário, um ex-tribuno, onde quer que podesse, lacerava com repreensão maldizente o costume que então começara a existir em Cartago, a saber, que hinos eram proferidos do livro dos Salmos diante do altar, ou antes da oblação, ou quando se distribuía ao povo o que fora oferecido. A esse respondi, por insistência dos irmãos.” Certamente que, se por um lado o cântico se acomoda à gravidade que convém à vista de Deus e dos anjos, se por outro concilia dignidade e graça aos atos sacros, é de muito valor para incitar os ânimos ao verdadeiro zelo e ardor no ato de orar. Contudo, impõe-se diligentemente guardar que os ouvidos não estejam mais atentos à melodia que a mente ao sentido espiritual das palavras. Com este perigo, em alguma parte o mesmo Agostinho se confessa mui perturbado pelo fato de que às vezes desejava que se estabelecesse o costume observado por Atanásio, o qual mandava o leitor expressar-se com tão reduzida inflexão da voz que mais se avizinhava daquele que declama do que daquele que canta. Quando, porém, se lembrava de quão grande beneficio os cânticos lhe haviam conferido, inclinava-se para o outro lado.296 Portanto, aplicada esta moderação, não há dúvida nenhuma de que seja uma prática muito santa e muito sadia; da mesma forma que, por outro lado, todos e quaisquer cantos que foram compostos apenas para o encanto e o deleite dos ouvidos, nem são compatíveis com a majestade da Igreja, nem se pode entoá-los sem desagradar sobremaneira a Deus.
João Calvino
Contudo, que esse costume não era universal o comprova Agostinho, o qual menciona que a igreja de Milão começou a cantar sob Ambrósio, quando Justina, mãe de Valentiniano, rugia furiosamente contra a fé ortodoxa, e geralmente o povo era mais assíduo em vigília. Mais tarde as demais igrejas ocidentais anuíram ao costume. Mas, ele disse um pouco antes que este costume proviera das igrejas orientais. No livro II das Refutações também indica que em seu tempo essa prática foi recebida na África. “Com efeito”, diz ele, “um certo Hilário, um ex-tribuno, onde quer que podesse, lacerava com repreensão maldizente o costume que então começara a existir em Cartago, a saber, que hinos eram proferidos do livro dos Salmos diante do altar, ou antes da oblação, ou quando se distribuía ao povo o que fora oferecido. A esse respondi, por insistência dos irmãos.” Certamente que, se por um lado o cântico se acomoda à gravidade que convém à vista de Deus e dos anjos, se por outro concilia dignidade e graça aos atos sacros, é de muito valor para incitar os ânimos ao verdadeiro zelo e ardor no ato de orar. Contudo, impõe-se diligentemente guardar que os ouvidos não estejam mais atentos à melodia que a mente ao sentido espiritual das palavras. Com este perigo, em alguma parte o mesmo Agostinho se confessa mui perturbado pelo fato de que às vezes desejava que se estabelecesse o costume observado por Atanásio, o qual mandava o leitor expressar-se com tão reduzida inflexão da voz que mais se avizinhava daquele que declama do que daquele que canta. Quando, porém, se lembrava de quão grande beneficio os cânticos lhe haviam conferido, inclinava-se para o outro lado.296 Portanto, aplicada esta moderação, não há dúvida nenhuma de que seja uma prática muito santa e muito sadia; da mesma forma que, por outro lado, todos e quaisquer cantos que foram compostos apenas para o encanto e o deleite dos ouvidos, nem são compatíveis com a majestade da Igreja, nem se pode entoá-los sem desagradar sobremaneira a Deus.
João Calvino
AS ORAÇÕES EXPRESSAS VERBALMENTE OU CANTADAS E AS CONDIÇÕES DE SUA ACEITABILIDADE
Além disso, daqui é mais do que claro que nem a voz, nem o canto, se intervenham
na oração, têm qualquer relevância ou são do mínimo proveito diante de Deus,
a não ser que procedam do profundo afeto do coracão; do contrário provocam sua
ira contra nós, caso saiam apenas da ponta dos lábios e da garganta, ao mesmo
tempo que isso equivale a abusar de seu sacrossanto nome e dirigir-lhe zombaria à
majestade; assim como evocamos das palavras de Isaías que, ainda que se estendam
mais amplamente, são pertinentes também para condenar este defeito. “Este povo”,
diz Isaías, “se aproxima de mim com sua boca e me honra com seus lábios, porém
seu coração está longe de mim, e me teme movido por preceito e doutrina de homens.
Portanto, eis que farei entre este povo um grande e estupendo milagre, porque
de seus sábios perecerá a sabedoria e dos anciãos se desvanecerá a prudência” [Is
29.13, 14; Mt 15.8, 9].
Contudo, tampouco condenamos aqui a voz ou o canto, senão que, antes, muito os
recomendamos, contanto que acompanhem o afeto da alma. Ora, assim exercitam a
mente na cogitação de Deus e a retêm atenta, a qual, como é escorregadia e versátil,
facilmente se afrouxa e se distrai em direções variadas, a menos que seja sustentada
por variados auxílios. Além disso, como em cada parte de nosso corpo, uma a uma, de
certo modo deve luzir a glória de Deus, convém que especialmente a língua, que foi
criada peculiarmente para declarar e proclamar o louvor de Deus, seja firmada e devotada
a este ministério, quer cantando, quer falando. Entretanto, o mais importante uso
da língua é nas orações públicas, que são pronunciadas na assembléia dos fiéis, mercê
das quais ocorre que, com uma voz comum e como que com a mesma boca, glorifiquemos
a Deus, todos juntos, a quem adoramos em um só espírito e com a mesma fé.
E isto abertamente, para que todos mutuamente recebam, cada um de seu irmão, a
confissão de fé, e sejam convidados e incitados a buscar seu templo.
João Calvino
João Calvino
AS ORAÇÕES PÚBLICAS DEMANDAM TEMPLOS E SANTUÁRIOS, NÃO PORQUE SEJAM POR ISSO EXCLUSIVOS E PARTICULARMENTE SAGRADOS, JÁ QUE NOSSO CORPO É O TEMPLO REAL DO ESPÍRITO, E DEUS NÃO OUVE APENAS AS ORAÇÕES NELES FEITAS
Ora, como Deus, por meio de sua Palavra, ordena aos fiéis orações em comum,
assim também importa que haja templos públicos destinados a seus exercícios, onde
os recusam acatar a ordem, associar-se em oração com o povo de Deus, não há
razão por que abusem do pretexto de que se acolhem ao quarto a orar, para que
assim obedeçam ao mandamento do Senhor. Pois Aquele que promete que ele haverá
de fazer tudo quanto pedirem dois ou três, congregados em seu nome [Mt 18.19,
20], comprova que de modo algum deixa de fazer caso de orações formuladas em
público, desde que a ostentação e a busca aferrada de mesquinha glória humana
sejam alijadas,e desde que se faça presente a sincera e verdadeira afeição que habita
no íntimo do coração.
Se este é o uso legitimo dos templos, como certamente é, então por outro lado
deve acautelar-se que não pensemos, como passou a acontecer durante alguns séculos,
ou que eles são a própria habitação de Deus, de onde nos incline bem mais os
ouvidos, ou imaginemos que, por alguma secreta santidade, torne mais sagrada a
oração diante de Deus. Ora, uma vez que nós mesmos somos os verdadeiros templos
de Deus, se queremos invocar a Deus em seu santo templo, então se faz necessário
que oremos dentro de nós mesmos. Não obstante, que deixemos para os judeus
ou gentios essa opinião carnal, nós que temos o preceito de invocar o Senhor “em
espírito e verdade” [Jo 4.23], sem distinção de lugar. De fato, por mandado de Deus
outrora fora dedicado o templo para nele se oferecessem orações e sacrifícios; mas,
nesse tempo a verdade jazia velada, representada sob tais sombras, a qual nos é
agora expressa ao vivo, o que não admite que nos apeguemos a algum templo material.
E, com efeito, tampouco o templo foi confiado aos judeus com a condição de
que, dentro de suas paredes, se encerrasse a presença de Deus; ao contrário, para
que fossem exercitados a contemplar a figura do templo genuíno. Portanto, os que,
de algum modo, pensavam que Deus habita em templos feitos por mãos humanas
foram seriamente repreendidos por Isaías e Estêvão [Is 66.1; At 7.48, 49].
João Calvino
João Calvino
NATUREZA E NECESSIDADE DA ORAÇÃO PARTICULAR E DA ORAÇÃO PÚBLICA E DETURPAÇÕES QUE PRECISAM SER ELIMINADAS
Ainda que se haja de entender esta oração ininterrupta principalmente como
sendo de cada pessoa em particular, não obstante de certa forma se refere às orações
públicas da Igreja.293 Com efeito, tampouco estas podem ser constantes, nem devem
também suceder de outro modo senão segundo a disposição que se convencionou de
comum consenso entre todos. Estou de pleno acordo. Ora, daqui não só são ajustadas
e estabelecidas horas certas, as quais são indiferentes diante de Deus, porém
necessárias aos usos dos homens, para que se atenda à convivência de todos, mas
também tudo seja feito na Igreja segundo a formulação de Paulo, “com decência e
ordem” [1Co 14.40]. Entretanto, isso não impede que cada Igreja deva, por um lado,
estimular-se, reiteradamente, ao uso mais freqüente de orações; por outro, alertada
por alguma necessidade maior, se inflame de zelo mais ardente. Contudo, quanto à
perseverança na oração, que tem muita afinidade com a constância, se poderá discorrer
mais no final deste capitulo.
Com efeito, estas coisas nada têm a ver com a repeticiosidade
vã] de que Cristo quis nossa interdição [Mt 6.7], pois não proíbe insistir
em orações por longo tempo, nem freqüentemente, nem com muito fervor; mas para
que não confiemos poder arrancar algo de Deus, aturdindo seus ouvidos com fútil
loquacidade, como se ele pudesse ser persuadido à maneira humana. Ora, sabemos
que os hipócritas, embora não tomem consciência de que estão tratando com Deus,
nas orações desfilam suas pompas não diferentemente que num cortejo triunfal.
Aquele fariseu que dava graças a Deus porque não se parecia com os demais [Lc
18.11], na verdade se aplaudia, não disfarçadamente, aos olhos dos homens, como
se, por meio da oração, quisesse granjear fama de santidade. Daqui essa que hoje, por uma razão semelhante, grassa no papismo, enquanto uns
gastam o tempo em vão, repetindo as mesmas precezinhas, outros diante do poviléu
se ostentam, mercê de longa avalanche de palavras. Uma vez que esta parolice desdenha
puerilmente de Deus, não é de admirar que seja proibida à Igreja, a que não
ressoe algo aí senão o que é sério e provindo do íntimo do coração.
A esta deturpação é também vizinha outra semelhante, a qual Cristo condena ao
mesmo tempo, a saber: que, por amor à ostentação, os hipócritas saem em busca de
muitas testemunhas, e para orar ocupam antes a praça pública para que suas preces
não sejam destituídas do louvor do mundo. Mas como a meta da oração é, em conformidade
com o que já expusemos, que nosso espírito se eleve a Deus para bendizê-lo
e rogar-lhe socorro, é licito entender disso que suas primeiras partes foram
postas na mente e no coração, ou, antes, que a oração em si é, propriamente, uma disposição do íntimo do coração, que se derrama e se expõe diante de Deus, o perscrutador
dos corações [Rm 8.27].
Daí, como já foi dito, o Mestre celestial, quando quis ditar a melhor regra de
orar, ordenou que entremos no quarto e, fechada a porta, oremos a nosso Pai em
secreto, para que nosso Pai, que vê em secreto, nos ouça [Mt 6.6]. Com efeito,
quando os hipócritas nos expulsam do templo, os quais, mercê de ambiciosa ostentação
de preces, aliciam o favor dos homens, ao mesmo tempo acrescenta o que seja
melhor, isto é: entrar no quarto e aí orar com porta fechada. Com estas palavras,
como eu as interpreto, nos ensinou a buscarmos um lugar retirado que nos ajude a
que, com toda reflexão, desçamos ao nosso coração e nele penetremos fundo, prometendo
o Mestre que Deus, de quem nossos corpos devem ser templo, estará perto
das disposições de nosso íntimo [2Co 8.16].
De fato, ele não quis negar que também convém orar em outros lugares, mas põe
em evidência que a oração é algo secreto, não só que esteja acima de tudo situada no
íntimo, como também que sua tranqüilidade requer que se ponha longe de todas as
turbas de preocupações. Portanto, também o próprio Senhor, quando quisesse devotar-se
mais intensamente às orações, não era sem razão que se retirava para um lugar
solitário, longe do tumulto dos homens. Mas ele fazia isso para que, com seu exemplo,
nos lembrasse que não se devem negligenciar estes auxílios, mercê dos quais
nosso ânimo, por si mesmo demasiado escorregadio, mais se aplica ao sério esforço
da oração. Ao mesmo tempo, entretanto, visto que não se abstinha de orar em meio
a uma turba de homens, se a qualquer tempo assim se lhe deparava ocasião, assim
também, em todos os lugares nos quais se fazia necessário, que ergamos mãos puras
em oração [2Tm 2.8]. E, ainda muito mais, assim se deve considerar: qualquer um
que se recusa a orar na sacra assembléia dos piedosos, não sabe coisa alguma como
orar individualmente, nem em lugar isolado, nem em casa. Por outro lado, aquele
que negligencia orar só e em particular, por mais assiduamente que freqüente as
reuniões públicas, aí engendra apenas preces cheias de vento, porquanto mais respeito
presta à opinião dos homens do que ao secreto juízo de Deus.
Enquanto isso, para que as orações comuns das Igreja não sofressem nenhum
desprezo, Deus outrora as adornou de esplêndidos títulos, especialmente onde chamou
ao templo casa de oração [Is 56.7; Mt 21.13; Mc 11.17; Lc 19.46]. Ora, mercê
desta expressão, Deus também ensinou que a parte principal de seu culto é o ofício
da oração, e para que nele os fiéis se exercitassem com um só sentimento, o templo
lhes fora alçado como uma bandeira. Ainda se adiciona uma solene promessa: “A ti,
ó Deus, espera o louvor em Sião, e a ti se pagará o voto” [Sl 65.1]; palavras com as
quais o Profeta sugere que as orações da Igreja nunca são ineficazes, porquanto
Deus provê sempre a seu povo sobejo motivo de cantar com triunfo. Mas, se bem
que as sombras da lei cessaram, contudo, porque Deus quis com esta cerimônia fomentar também entre nós a unidade da fé, não há dúvida de que a nós pertença a
mesma promessa, a qual Cristo não só sancionou com sua boca, mas Paulo também
ensina ser de vigência perpétua.
João Calvino
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NATUREZA E CONTEÚDO DA ORAÇÃO PESSOAL, E QUE DEVE ESTAR POLARIZADA NA SÚPLICA E NA AÇÃO DE GRAÇAS
Mas, ainda que a oração se restrinja propriamente a pedidos e súplicas, entretanto
é tão grande a afinidade entre petição e ação de graças, que comodamente se
podem compreender ambas sob um só nome. E de fato, as espécies de oração que
Paulo enumera [1Tm 2.1] recaem sob o primeiro membro desta divisão. Rogando e
suplicando, derramamos nossos desejos diante de Deus, pedindo tanto as coisas
que contribuem para propagar-lhe a glória e ilustrar-lhe o nome, quanto os benefícios
que conduzem ao nosso proveito. Dando graças, com justo louvor celebramos lhe
as benevolências para conosco, creditando-lhe à liberalidade tudo quanto de bom
nos advém. E assim Davi combinou, a um tempo, estas duas partes: “Invoca-me no
dia da necessidade; livrar-te-ei e tu me glorificarás” [Sl 50.15].
Não sem causa, a Escritura prescreve que ambas nos estejam em uso continuamente,
pois em outro lugar dissemos que nossa pobreza é por demais grande, mas o
próprio fato proclama que de toda parte somos instados e premidos por tantas e tão
grandes tribulações, que todos têm sobejos motivos para gemerem e suspirarem
constantemente diante de Deus, e de lhe suplicarem sua ajuda e favor. Ora, ainda
que estejam livres de coisas adversas, a culpa de seus delitos, bem como os inúmeros
assaltos das tentações, então deve aguilhoar ainda aos mais santos a buscarem
remédio. Mas, no sacrifício de louvor e de ação de graças não pode haver nenhuma
interrupção sem delito, quando Deus não cessa de cumular benefícios, uns sobre os
outros, para nos coagir à gratidão, embora lerdos e preguiçosos. Enfim, tão grande e tão profusa prodigalidade de suas benevolências quase nos sufoca, para onde quer
que olhes se discernem tantos e tão ingentes milagres seus, de sorte que nunca nos
falte argumento e motivo de louvor e ação de graças.
E para que essas coisas se expliquem um tanto mais claramente, uma vez que, o
que previamente já se provou com exaustão, em Deus se situam toda a nossa esperança
e recursos, de modo que, nem a nós nem a todas as nossas coisas podemos ter
prosperamente senão por sua bênção, importa que nos recomendemos constantemente,
a nós mesmos e a tudo que é nosso. Então, tudo quanto decidimos, falamos,
fazemos, decidamos, falemos, façamos debaixo de sua mão e vontade; enfim, sob a
esperança de seu auxílio. Pois malditos são por Deus declarados todos os que concebem
e executam planos na confiança de si mesmos ou de outro qualquer, os que
encetam ou tentam começar algo, à parte de sua vontade e sem invocá-lo [Is 30.1;
31.1; Tg 4.13-16]. E como já se afirmou diversas vezes que ele é investido de justa
honra quando é reconhecido como o autor de tudo que é bom, daí se segue que assim
se devem receber de sua mão todas essas coisas que devem ser acompanhadas de
constante ação de graças, e que nenhuma razão justa há por que façamos uso de suas
benevolências não com outra finalidade senão porque provêm de sua liberalidade,
senão também para confessá-lo e render-lhe louvor e graças incessantemente. Pois
Paulo, quando testifica que “elas são santificadas pela Palavra e pela oração” [1Tm
4.5], acena, ao mesmo tempo, que sem a Palavra e a oração – entendendo realmente a
fé, metonimicamente, por Palavra –, todas elas mui longe estão de ser santas e puras.
Portanto, ao perceber a liberalidade do Senhor, Davi proclama efusivamente
que um cântico novo lhe foi posto na boca [Sl 40.3], de fato indicando com isto que
o silêncio é pernicioso, caso deixemos passar sem o justo louvor algum beneficio
seu, quando tantas vezes se nos exibe motivo de bendizê-lo sempre que o mesmo se
nos depara. Assim também Isaías, proclamando a graça singular de Deus, exorta os
fiéis a entoarem um cântico novo e não vulgar [Is 42.10]. Neste sentido, em outro
lugar, Davi se expressa assim: “Senhor, abrirás meus lábios e minha boca anunciará
teu louvor” [Sl 51.15]. De igual modo, Ezequias e Jonas testificam que este lhes foi
o fim da libertação: que celebrem no templo, com cânticos, a bondade de Deus [Is
38.20; Jn 2.9]. Davi prescreve esta mesma norma, generalizadamente, a todos os
piedosos. “Que darei ao Senhor”, diz ele, “por tudo o que me conferiu? Tomarei o
cálice da salvação e invocarei o nome do Senhor” [Sl 116.12, 13]. E a Igreja segue
essa norma, noutro Salmo: “Salva-nos, Senhor nosso Deus, e congrega-nos dentre
os gentios, para que louvemos teu nome santo, e nos gloriemos em teu louvor” [Sl
106.47]. Igualmente: “Ele atentou à oração do desamparado, e não desprezará sua
oração. Isto se escreverá para a geração futura; e o povo que se criar louvará ao
Senhor” [Sl 102.17, 18].
Com efeito, sempre que os fiéis imploram a Deus que faça algo por amor de seu Nome, com isso confessando que são indignos de obter alguma coisa em seu próprio
nome, assim se obrigam a render graças e prometem que este lhes haverá de ser
o reto uso da beneficência de Deus: que sejam seus arautos. Assim Oséias, falando
da redenção vindoura da Igreja: “Remove”, diz ele, “toda a iniqüidade, e aceita o
que é bom; e ofereceremos como novilhos os sacrifícios de nossos lábios” [Os 14.2].
Certamente, os benefícios e mercês que Deus nos fez não só requerem que os honremos
com os lábios, mas que naturalmente nos constrangem a amá-lo: “Amo ao
Senhor”, diz Davi, “porque o ele ouviu minha voz e minha súplica” [Sl 116.1].
Igualmente, em outro lugar, recitando os socorros que havia sentido: “Eu te amarei,
ó Deus, fortaleza minha” [Sl 18.1]. Porque é um fato que os louvores que não procedem
desta fonte de amor jamais agradarão a Deus.291
Além disso, é preciso levar em conta esse parecer de Paulo de que as súplicas
que não associam à ação de graças são todas elas perversas e viciosas. Pois, assim
fala: “vossas petições”, diz ele, “sejam em tudo conhecidas diante de Deus pela
oração e súplicas, com ação de graças” [Fp 4.6]. Ora, uma vez que muitos são impelidos
por uma espécie de desabafo, descontentamento, impaciência, excessiva dor e
medo a murmurar quando oram, o Apóstolo ordena que os sentimentos dos fiéis
sejam de tal modo moderados, que mesmo antes que hajam recebido o que almejam,
não obstante bendigam jubilosamente a Deus. Porque, se esta correlação deve vigorar
em coisas quase contrárias, com este vínculo mais santo Deus nos compele a
cantar seus louvares sempre que nos satisfaça aos anelos.
Mas, assim como já ensinamos que nossas orações, que de outra maneira seriam
poluídas, são consagradas pela intercessão de Cristo, também o Apóstolo, ordenando
que através de Cristo ofereçamos sacrifício de louvor [Hb 13.15], adverte que
não temos boca suficientemente pura para celebrar o nome de Deus, a menos que o
sacerdócio de Cristo intervenha. Do quê concluímos que prodigiosamente enfeitiçados
têm sido os homens no papismo, no qual a maior parte fica surpresa de Cristo
ser chamado Advogado. Esta é a razão por que Paulo preceitua não apenas orar, mas
também render graças sem intermissão [1Ts 5.17, 18; 1Tm 2.1, 8]; com isso querendo
dizer que, com toda diligência possível, a todo tempo e em todo lugar, em tudo
quanto fazemos e tratamos, todos os nossos desejos estejam levantados a Deus para
esperar dele todo o bem e para dar-lhe as graças por tudo quando dele recebemos; já
que ele nos dá continuamente motivo para orar a ele e louvá-lo.
João Calvino
João Calvino
CONSIDERAÇÕES FINAIS EM REFUTAÇÃO À DOUTRINA DA INTERCESSÃO DOS CHAMADOS SANTOS DO ROMANISMO
Seja a conclusão de tudo isso o fato de que, quando a Escritura nos recomenda
que o invoquemos como o ponto capital no culto de Deus – pois estima mais este
dever que todos os demais sacrifícios –, de nós exige este mister da piedade, é um
manifesto sacrilégio dirigir a outros a oração. Donde, também no Salmo, se diz: “se
estendemos nossas mãos para um deus estranho, porventura Deus não esquadrinhará
isso?” [Sl 44.20, 21]. Além disso, quando Deus quer ser invocado só pela fé, ele
ordena expressamente que as orações se conformem à regra de sua Palavra; finalmente,
quando a fé fundamentada na Palavra é a mão da oração correta, assim que
se desvia da Palavra, a oração necessariamente se corrompe. Com efeito, já demonstramos
que em toda a Escritura esta honra é reservada exclusivamente a Deus.
No que diz respeito à função da intercessão, também já notamos ser ela ofício
peculiar a Cristo, e que nenhuma outra oração é agradável a Deus senão aquela que
este Mediador santifica. E ainda que os fiéis mutuamente ofereçam orações diante
de Deus em favor dos irmãos, já mostramos que isso nada derroga à intercessão
única de Cristo, já que todos recomendam a Deus tanto a si mesmos, quanto aos
outros, nela igualmente se apóiam. Além disso já ensinamos que isto é nesciamente
atribuído aos mortos, aos quais jamais lemos ser ordenado que orem por nós. A
Escritura nos exorta com freqüência as obrigações mútuas deste exercício; no entanto,
dos mortos nem sequer uma sílaba. Tiago, com efeito, enfeixando estas duas
injunções, que entre nós confessemos nossos pecados e oremos uns pelos outros
[Tg 5.16], tacitamente exclui os mortos.
Conseqüentemente, é suficiente esta única razão para se condenar este erro: que
o início da oração correta provém da fé; que a fé, porém, procede de ouvir a Palavra
de Deus [Rm 10.14, 17], onde nenhuma menção se faz da fictícia intercessão dos santos, visto que a superstição engendrou para si, temerariamente, patronos que não
foram divinamente providenciados. Porque, embora na Escritura haja muitas formas
de oração, não se encontrará nela um só exemplo que confirme a intercessão dos
santos falecidos, sem a qual no papado não se tem por verdadeira e eficaz nenhuma
intercessão.289 Ademais, é evidente que esta superstição nasceu da falta de fé, porque
ou não se contentaram com Cristo como intercessor, ou o despojaram inteiramente
deste mérito. E este último ponto facilmente se prova à luz de sua impudência, porquanto
não pugnam, com outro argumento mais forte, ser-nos necessário o patrocínio
dos santos senão em objetar que somos indignos de acesso íntimo a Deus.
De fato confessamos ser isto mui verdadeiro, mas daí concluímos que eles não
fazem caso algum de Cristo, pois têm sua intercessão como algo de nenhum valor,
se não a acompanham com a de São Jorge, a de São Hipólito e a de outros espantalhos
semelhantes.
João Calvino
João Calvino
O FATO DE DEUS OUVIR AS ORAÇÕES DE SEUS SANTOS NESTA VIDA NÃO PROVA O PODER DE SUA INTERCESSÃO APÓS A MORTE, ANTES NOS DESAFIA A ORAR COMO FIZERAM
Mas o que a alguns realmente impressiona é que freqüentemente lemos que as orações dos santos são ouvidas. Por quê? Obviamente, porque oraram. “Em ti esperaram”,
diz o Profeta, “e foram salvos; clamaram, e não foram confundidos” [Sl
22.4, 5]. Oremos, pois, também nós, segundo seu exemplo, para que, à semelhança
deles, sejamos ouvidos. Estes, porém, contrariamente arrazoam, em contraposição
a tudo que é próprio, dizendo que ninguém será ouvido, senão os que já foram
ouvidos. Tiago o expressa muito melhor! “Elias”, diz ele, “era um homem semelhante
a nós, e orou fervorosamente para que não chovesse, e por três anos e seis meses não
choveu sobre a terra. Orou novamente, e o céu deu chuva, e a terra deu seu fruto” [Tg
5.17, 18]. Por quê? Porventura infere Tiago que houvesse em Elias alguma prerrogativa
singular à qual nos devamos acolher? Longe disso! Ao contrário, ele ensina o
perpétuo poder da oração pia e pura, com o fim de nos exortar a que oremos de modo
semelhante. Porque entenderíamos mal a prontidão e benignidade de Deus em ouvilas,
se com tais experiências dos santos não nos firmarmos com maior confiança em
suas promessas, nas quais garante que seu ouvido estará atento para ouvir não a um
ou a outro, ou mesmo a uns poucos, mas a todos que invocarem seu nome.
E por isso tanto menos admite escusa de sua ignorância, porque parecem desprezar,
por assim dizer, deliberadamente a tantas advertências da Escritura. Porventura
foi Davi freqüentemente livrado pelo poder de Deus para apropriar-se dele, de
modo que fôssemos livrados por seu sufrágio? Ele mesmo se expressa de modo
muito distinto: “Os justos esperam por mim, até que me recompenses” [Sl 142.7].
Igualmente: “Os justos verão, e se regozijarão, e esperarão no Senhor” [Sl 52.6;
64.10]; “Este pobre clamou a Deus, e ele lhe respondeu” [Sl 34.6]. Muitas são as
orações desta natureza nos Salmos, nas quais ele apela a Deus para que, por esta
razão, conceda o que está a implorar, para que os justos não sejam envergonhados;
antes, por seu exemplo, sejam animados a orar bem. Agora, estejamos satisfeitos
com um só exemplo: “Por isso, todo santo orará a ti em tempo oportuno” [Sl 32.6];
passagem que cito com muito mais prazer, porque estes indoutos advogados não se
acanham em haver vendido sua língua mercenária a serviço do papado, evocando-a
para provar a intercessão dos mortos. Como se realmente outra coisa quisesse Davi
senão mostrar o fruto que provirá da clemência e da benignidade de Deus, quando
concede o que lhe é pedido.
E é preciso sustentar, de modo geral, que a experiência da graça de Deus, tanto por
nós, quanto por outros, não é uma ajuda diminuta em confirmar-se a fidelidade de
suas promessas. Não recito as muitas passagens onde Davi põe diante de si os benefícios
de Deus como fator de confiança, porque prontamente ocorrerão aos leitores dos
Salmos. Jacó ensinara isso mesmo, com seu exemplo: “Menor sou eu que todas as
beneficências, e que toda a fidelidade que fizeste a teu servo; porque com meu cajado
passei este Jordão, e agora me tornei em dois rebanhos” [Gn 32.10]. É verdade que ele
se refere à promessa, todavia não a só à promessa, senão que, ao mesmo tempo, acresce
o efeito, para que no futuro possa mais animosamente confiar que Deus haverá de ser o mesmo para consigo. Porquanto Deus não é semelhante aos mortais, que se
entediam de sua liberalidade ou cuja capacidade se exaure; pelo contrário, deve ser
estimado por sua própria natureza, como judiciosamente o faz Davi: “Tu me redimiste”,
diz ele, “Senhor Deus da verdade” [Sl 31.5]. Depois que a Deus tributa o louvor de
sua salvação, acrescenta ser ele veraz, porquanto, a não ser que fosse perpetuamente
semelhante a si mesmo, o argumento que se tomaria de seus benefícios não seria
suficientemente sólido para confiar nele e o invocar.288 Quando, porém, sabemos
que sempre que nos assiste ele dá exemplo e prova de sua bondade e fidelidade, não
há por que temer que nossa esperança nos arraste à vergonha ou nos engane.
João Calvino
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