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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A ACEITAÇÃO DO HOMEM PERANTE DEUS RESULTA, ALÉM DO MAIS, DAS BOAS OBRAS, AS QUAIS, NÃO OBSTANTE, SÃO PRODUZIDAS EM FUNÇÃO DA BONDADE DIVINA, RAZÃO PRIMORDIAL DESSA ACEITAÇÃO

De fato, depois que, mercê da graça da adoção, o Senhor separou para si o homem retirado do abismo da perdição, visto que o regenerou e reformou para a nova vida, como nova criatura [2Co 5.17], com os dons de seu Espírito, agora o abraça. Esta é aquela aceitação de que Pedro faz menção [At 10.34; 1Pe 1.17], pela qual, após sua vocação, os fiéis são aprovados por Deus também com respeito às obras, porque é impossível que o Senhor não ame e afague as boas coisas que, por seu Espírito, neles opera. Mas, deve-se ter isto sempre reiterado na memória, a saber, que esses são aceitos por Deus, em virtude das obras, não de outra maneira, senão porque, em deferência àqueles a quem abraça o favor, tudo quanto de boas obras conferiu, aumentando sua liberalidade, digna também de sua aceitação. Donde, pois, têm eles as boas obras, senão que o Senhor, da mesma forma que os escolheu como vasos para honra [Rm 9.21], assim os quer adornar com verdadeira pureza? Donde também elas são tidas por boas obras, como se nada lhes faltasse, senão porque o Pai benigno concede perdão às manchas e nódoas que as contaminam? Em suma, outra razão não existe nesta passagem para que seus filhos sejam agradáveis e amáveis a Deus, nos quais visualiza traços e marcas de sua própria imagem, pois já ensinamos em outro lugar que a regeneração é a restauração da imagem divina em nós. Portanto, uma vez que, sempre que Deus contempla sua face, não só a ama com razão, como também a tem em honra, não sem causa se diz que a vida dos fiéis lhe é aprazível, afeiçoada à santidade e à justiça. Visto, porém, que, envolvidos pela carne mortal, os piedosos continuam ainda pecadores e suas boas obras são só imperfeitas e saturadas da corrupção da carne, nem àqueles, nem a estas pode Deus ser propício, a menos que os abrace em Cristo, mais do que em si mesmos. Desta maneira devem ser recebidas as referências que testificam ser Deus clemente e misericordioso para com amantes da justiça. Dizia Moisés aos israelitas: “O Senhor, teu Deus, que guarda o pacto e a misericórdia para com os que o amam e guardam Seus preceitos, até mil gerações” [Dt 7.9], afirmação que foi mais tarde usada pelo povo como uma fórmula comum. Assim Salomão, em sua oração solene: “Ó Senhor, Deus de Israel, que guardas o pacto e a misericórdia para com teus servos, que andam diante de ti de todo o seu coração” [1Rs 8.23]. As mesmas palavras são repetidas também por Neemias [Ne 1.5]. Porque, deveras, em todos os pactos de sua misericórdia Deus exige formalmente de seus servos, por seu turno, integridade e santidade de vida, para que sua bondade não seja alvo de motejo; nem, inflado de vã exultação por esse fato, alguém bendiga sua alma, contudo andando na depravação de seu coração [Dt 29.19], conseqüentemente, Deus quer, por essa via, manter em seu papel os admitidos à comunhão do pacto; contudo, desde o início, não somente o próprio pacto é em nada menos admitido como gracioso, como também assim permanece perpetuamente. Segundo esta consideração, embora proclame sua recompensa lhe foi conferida pela pureza de suas mãos [2Sm 22.21; Sl 18.20], contudo, Davi não omite essa fonte que mencionei, de que fora tirado do ventre porque Deus o amou. Ao falar desse modo, ele mantém que sua causa é justa e boa; mas, de tal modo, que em nada denigre a misericórdia de Deus, a qual precede a todos os dons e benefícios, dos quais é a fonte e origem.

João Calvino