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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

DEUS NOS ACEITA NÃO EM VIRTUDE DE QUALQUER MÉRITO NOSSO, MAS EM RAZÃO DE SUA MISERICÓRDIA

Citam a declaração de Pedro que Lucas recita em Atos: “Na verdade, descubro que Deus não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em toda nação aquele que pratica a justiça lhe é aceitável” [At 10.34, 35]. Destas palavras crêem poder deduzir um sólido argumento: que se o homem, por suas boas obras, alcança favor e graça diante de Deus, então o benefício que alcança a salvação não procede somente de Deus; pelo contrário, que por sua misericórdia de tal maneira Deus socorre o pecador, que se move a mostrar-se misericordioso pelas boas obras daquele. Com efeito, de modo nenhum poderás conciliar as Escrituras, a não ser que observes uma dupla aceitação do homem junto a Deus. Ora, como é o homem por natureza, Deus não acha nada nele por que se incline à misericórdia, exceto unicamente sua miséria. Se, pois, é evidente que o homem ao qual Deus inicialmente recebe em sua graça, está desnudo e privado de todo bem, e, pelo contrário, se acha carregado e dominado por quantos males existem, em virtude do quê, pergunto, merece que Deus o chame a si [Hb 3.11]? Portanto, descartemos toda idéia de méritos, onde tão manifestamente Deus recomenda sua graciosa clemência! Ora, o que na mesma passagem é dito a Cornélio pela voz do anjo, que suas orações e esmolas haviam subido à presença de Deus [At 10.31], é por eles torcido de forma mui improcedente para significar que o homem é preparado para receber a graça de Deus mediante o cultivo das boas obras. Porque foi necessário que já antes Cornélio fosse iluminado pelo Espírito de sabedoria, já que já estava instruído na verdadeira sabedoria, isto é, do temor de Deus. E assim mesmo foi necessário que fosse santificado pelo mesmo Espírito, posto que amava a justiça, a qual o Apóstolo ensina ser fruto divino [Gl 5.5]. Conseqüentemente, todas essas coisas, que nele se referem como sendo agradáveis a Deus, ele as recebera de sua graça; logo, dificilmente podia preparar-se por seus próprios meios para recebê-la. Sem dúvida, nem sequer uma sílaba da Escritura poderá ser apresentada que não esteja de pleno acordo com esta doutrina: que para aceitar o homem Deus não tem em si outra causa, senão porque o vê totalmente perdido, caso seja entregue a si mesmo; mas, porque não quer que ele permaneça perdido, exerce sua misericórdia em livrá-lo. Vemos agora que essa aceitação não procede da justiça do homem; ao contrário, é mera prova da bondade divina para com pecadores miseráveis e absolutamente indignos de tão grande benefício.

João Calvino