Esta fórmula ou regra de orar é constituída de seis petições. Ora, a razão que me
leva a não dividi-la em sete artigos, como fazem alguns, é que o evangelho, ao
dizer, “não nos deixe cair em tentação, mas livra-nos do mal”, liga dois membros
para fazer uma só petição; ao contrário, “socorre-nos em nossa debilidade e não nos
deixes cair”. Conosco estão também de acordo antigos escritores da igreja;300 de
sorte que, agora, o que em Mateus foi adicionado em sétimo lugar deve ser exegeticamente
atribuído à sexta petição.
Mas, ainda que toda a oração seja de tal natureza que por toda parte deva-se ter
em primeiro plano o motivo da glória de Deus, contudo as primeiras três peticões se
destinaram particularmente à glória de Deus, a qual, nelas, temos unicamente que levar em conta, sem ter absolutamente em nenhuma consideração nosso proveito.
As três petições restantes tratam do cuidado de nós mesmos e foram assinaladas
propriamente àquelas coisas que se devem suplicar em virtude de nossa necessidade.
Por exemplo, quando rogamos que o nome de Deus seja santificado, visto que
Deus quer pôr à prova se porventura se é amado e cultuado por nós desinteressadamente,
ou pela esperança de recompensa, então nossa vantagem não deve estar em
cogitação; pelo contrário, sua glória deve estar posta diante de nós, para que, de
olhos fixos, só contemplemos a ela. Tampouco devemos deixar-nos afetar de outro
modo nas orações restantes desta natureza.
Certamente disto se deduz um grande proveito para nós; porque, enquanto seu
nome é dessa forma santificado como pedimos, assim também, por sua vez, se opera
nossa santificação. Nossos olhos, porém, como já foi dito, devem estar fechados
para proveito dessa ordem, e de certo modo se fazerem cegos, para que não atentem
absolutamente para o mesmo. De sorte que, se fosse cortada toda esperança de nosso
bem particular, contudo, esta santificação, e outras coisas que dizem respeito à
glória de Deus, não deixam de ser por nós almejadas e suplicadas nas orações.
Como se observa nos exemplos de Moisés e de Paulo [Ex 32.32; Rm 9.3], aos quais
não foi penoso desviar de sua própria pessoa a mente e os olhos, e com zelo veemente
e inflamado, pedir sua própria perdição, para que, até mesmo com dano próprio,
pudessem promover a glória e o reino de Deus. Por outro lado, quando pedimos que
nos seja dado nosso pão de cada dia, ainda que desejemos o que é de nosso interesse,
contudo, aqui também, devemos buscar especialmente a glória de Deus, para
que de fato nada peçamos, a não ser o que redunde para sua glória.
Agora avancemos para com a própria exposição da Oração do Senhor.
João Calvino