IMPORTÂNCIA DA DOUTRINA DA LIBERDADE CRISTÃ E SUA RELAÇÃO COM A
JUSTIFICAÇÃO
Impõe-se tratar agora da liberdade cristã, uma exposição da qual de modo nenhum
deve ser omitida por aquele a quem o propósito seja abranger em uma síntese a
suma da doutrina evangélica. Ora, é coisa muitíssimo necessária, e à parte de cujo
conhecimento as consciências sem dúvida não ousam encetar quase nada, em muitas
coisas hesitam e se retraem, estão sempre a mudar e a temer, mas, especialmente,
esta doutrina da liberdade cristã é um apêndice da justificação e vale não pouco
para se compreender seu teor e alcance. Com efeito, os que temem seriamente a
Deus daqui perceberão o incomparável fruto desta doutrina, da qual os ímpios e os
seguidores de Luciano espirituosamente motejam com suas insinuações, porque, na
embriaguez espiritual de que foram tomados, lhes é lícita toda e qualquer impudência.
Em vista disso, virá agora a consideração em momento oportuno. Além disso,
embora de leve, ela já foi por nós abordada algumas vezes, e foi útil relegar-lhe
mais plena consideração a este lugar, visto que tão logo se introduz alguma menção
da liberdade cristã, aí já fervem as paixões, ou surgem tumultos insanos, a menos
que a tempo se faça frente a esses espíritoslascivos, os quais, de outra sorte, corrompem
impiamente cada uma das coisas mais excelentes. De fato, alguns, a pretexto
desta liberdade, põem abaixo toda obediência de Deus e se lançam a desenfreada
licenciosidade; outros se exasperam contra ela, julgando que toda moderação, ordem
e discernimento das coisas são removidos.
Que fazer em tal situação, cercados de tais dificuldades? Porventura, descartando
a liberdade cristã, cortamos de antemão a oportunidade a perigos desta natureza?
Com efeito, como foi dito, salvo se essas coisas forem mantidas sustidas, não se
conhece com exatidão nem a Cristo, nem a verdade do evangelho, nem a paz interior
da alma. E Deve-se fazer esforço antes para não suprimir-se parte tão necessária
da doutrina, e contudo, às vezes, ficam refutadas todas as objeções absurdas que
costumam suscitar no tocante a esta matéria.
João Calvino