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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

EM CONTRAPOSIÇÃO À ATITUDE ESPECULATIVA DOS CURIOSOS E À TACITUDE DOS TIMORATOS, CABE ABORDAR-SE A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO, PORÉM, COM MODERAÇÃO E VIGILÂNCIA

Há outros que, enquanto querem remediar a este mal, pouco falta a que não prescrevam que seja sepultada toda e qualquer menção da predestinação. De fato, ensinam que se deve fugir a toda e qualquer questão relativa a ela, não de outra forma senão como de algo perigoso, dos quais ainda que, com razão, se deva louvar a moderação, porquanto julgam com tão grande sobriedade que se devem reverenciar os mistérios, no entanto visto que descem a um nível demasiadamente baixo, pouco avançam em relação ao entendimento humano, que não se deixa facilmente ser embargado. Portanto, para que também neste aspecto mantenhamos o legítimo limite, é preciso retornar à Palavra do Senhor, na qual temos segura regra à compreensão. Pois a Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual não se deixa de pôr coisa alguma necessária e útil de se conhecer, nem tampouco se ensina nada mais além do que se precisa saber. Portanto, tudo quanto na Escritura se dá a conhecer acerca da predestinação, é preciso cuidar para que disso não privemos os fiéis, a fim de que não pareçamos ou maldosamente defraudá-los da benevolência de seu Deus, ou acusar e escarnecer o Espírito por haver divulgado essas coisas que seria proveitoso fossem suprimidas e mantidas em segredo. Insisto que devemos permitir ao homem cristão abrir a mente e os ouvidos a todas as palavras de Deus que lhe são dirigidas, desde que se faça com esta moderação: que assim que o Senhor haja fechado sua santa boca, também fecha ele atrás de si o caminho à especulação. Aqui está o melhor limite da sobriedade: que ao aprendermos sigamos a Deus, deixando que ele fale primeiro; e se o Senhor deixa de falar, tampouco nós queiramos saber mais, nem avançar mais um passo. Tampouco é de tão grande relevância o fato de que temem perigo de que com isso desviemos a mente dos oráculos de Deus. Célebre é o dito de Salomão: “Glória de Deus está nas coisas encobertas” [Pv 25.2]. Como, porém, não só a piedade, mas também o senso comum, ditem que isto não se entende de toda e qualquer coisa indiscriminadamente, cabe-nos buscar uma distinção, para que não tenhamos prazer na ignorância bruta sob o pretexto de modéstia e sobriedade. Com efeito, esta distinção é expressa em mui breves palavras por Moisés: “As coisas encobertas”, diz ele, “pertencem ao Senhor nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem a nós e a nossos filhos para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” [Dt 29.29]. Vemos, pois, como ele exorta a seu povo a que se aplique ao estudo da lei, porque a Deus aprouve promulgá-la, mas ao mesmo povo, por esta mera razão, ele contém nestes limites: que não é lícito aos mortais ingerir-se nas coisas secretas de Deus.

João Calvino