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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

DA JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ RESULTA QUE SE TORNAM ACEITÁVEIS AS OBRAS QUE SÃO INTRINSECAMENTE IMPERFEITAS, E POR ISSO SÃO DESTITUÍDAS DE QUALQUER MÉRITO

Ora, se alguém me lança isso em rosto para impugnar a justiça da fé, antes de tudo lhe perguntarei se acaso um homem é considerado justo por uma ou outra obra santaenquanto é transgressor da lei nas restantes obras da vida. Certamente que isso é mais que absurdo. Então indagarei se porventura seja considerado justo também em razão de muitas obras boas se, entretanto, em alguma parte é tido por culpado de prevaricação. Por certo que isso ele não ousará sustentar, quando protesta a sanção da Lei e proclama malditostodos os que não tiverem cumprido integralmente a todos os mandamentos da lei [Dt 27.26]. Além disso, irei mais longe: se porventura haja alguma obra que não mereça ser argüida de nenhuma impureza ou imperfeição. E como haveria tal obra diante daqueles olhos aos quais nem as estrelas são suficientemente puras[Jó 25.5], nem os anjos suficientemente justos? [Jó 4.18]. E assim ele se verá compelido a admitir que nenhuma boa obra existe que não tenha sido poluída, não só de transgressões a si impostas, como também de sua própria corrupção, de sorte que não tenha a honra de justiça. Ora, se é patente que da justificação pela fé resulta que obras de outra sorte impuras, imundas, feitas pela metade, são indignas da vista de Deus, quanto mais de seu amor, se reputem como justiças, por que da jactância desta segunda modalidade de justiça tentam destruir aquela, se a mesma não existisse, dela se jactariam em vão? Porventura querem fazer disso uma ninhada de víboras? Ora, nessa direção descambam os dizeres dos ímpios. Não podem negar que a justificação pela fé é a princípio o fundamento, a causa, a prova, a substância da justiça das obras, entretanto concluem que o homem não é justificado pela fé, porquanto as boas obras são também reputadas para justiça. Deixemos, pois, de lado esses despropósitos e confessemos o que é fato: se toda a justiça das obras depende da justiça da fé, afirmo que a justiça das obras, não só em nada fica rebaixada nem minorada pela justiça da fé, mas, antes, é confirmada por ela, para que desta maneira sua virtude resplandeça mais nítida e evidentemente. Nem pensemos tampouco que, depois da justificação gratuita, de tal maneira são estimadas as obras que a justificação do homem se verifique por elas, ou que entre em parceria com a fé para consegui-lo. Ora, a menos que a justificação pela fé permaneça perpetuamente íntegra, sua imundície haveria de se manifestar. Contudo, não é absurdo que o homem é de tal forma justificado pela fé que não só próprio seja justo, mas também suas obras são justas sem que o mereçam.


João Calvino