Segue-se a segunda parte da Oração do Senhor, na qual descemos aos nossos
interesses, certamente não ao ponto que prejudique a glória de Deus, a qual, Paulo o
atesta [1Co 10.31], deve também ser contemplada no alimento e bebida, busquemos
apenas o que nos é da conveniência. Mas, já frisamos que existe esta diferença: que
vindicando para si, particularmente, as três petições referidas, Deus nos arrebata totalmente para si, para, desse modo, provarmos a piedade. Então ele admite que
atentemos também para nosso proveito, todavia, com esta lei: que procuremos algo
para nós, senão para este fim: que todos e quaisquer benefícios que nos confere
façam resplandecer sua glória, pois que nada é mais apropriado do que vivermos e
morrermos para ele [Rm 14.7, 8].
Aqui, porém, através da primeira petição desta segunda parte – “o pão nosso de
cada dia dá-nos hoje” – pedimos de Deus todas as coisas em geral de que o uso do
corpo necessita sob os elementos deste mundo [Gl 4.3], não somente com o que
sejamos alimentados e sejamos vestidos, mas também tudo quanto ele mesmo antevê
que nos conduza a que comamos nosso pão em paz. Em suma, por esta petição
nos entregamos a seu cuidado e nos confiamos a sua providência, para que nos dê
alimento, sustente e preserve. Pois o Pai boníssimo não desdenha tomar sob sua
proteção e guarda nem mesmo nosso corpo, para que a fé nos exercite nessas coisas
diminutas, enquanto dele esperamos tudo, inclusive uma simples migalha de pão e
uma gota de água. Ora, uma vez que nossa iniqüidade é tal, que sempre temos muito
mais em conta, e tomamos maior cuidado do corpo do que de nossa alma, muitos
que se atrevem a confiar sua alma a Deus não deixam, contudo, de estar preocupados
com a roupa; e se não têm sempre à mão grande abundância de vinho, trigo e
azeite, estão tremendo, crendo que lhes haverá de faltar. De tanto mais estima nos
é a sombra desta vida passageira do que aquela eterna imortalidade! Aqueles que,
porém, confiados em Deus, alijaram de vez aquela ansiedade quanto ao cuidado da
carne, ao mesmo tempo esperam dele sem detença coisas que são maiores, até mesmo
a salvação e a vida eterna. Logo, esperar de Deus aquelas coisas que, de outro
modo, nos mantêm tão profundamente ansiosos, não é um leve exercício de fé, nem
parco proveito é quando nos despimos desta falta de confiança que se apega obstinadamente
aos ossos de quase todos os homens.
Com efeito, parece-me convir bem pouco à expressão de Cristo o que alguns
filosofamacerca de pão supersubstancial. De fato, a não ser que nesta vida caduca
também atribuíssemos a Deus as funções de nutridor, a súplica seria imperfeita. A
razão que apresentam é demasiado profana; dizem que não convém aos filhos de
Deus, que devem ser espirituais, não só volvam a atenção aos cuidados terrenos,
mas que inclusive envolvem a Deus neles. Como se realmente sua bênção e favor
paterno não resplendessem também no alimento, ou tivesse escrito em vão que “a
piedade é para tudo proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que há de
vir!” [1Tm 4.8]. Mas, embora a remissãodos pecados de muito seja mais importante que os alimentos do corpo – o que no entanto era inferior Cristo pôs em primeiro
lugar –, para que nos conduzisse gradualmente às duas petições restantes, que são
próprias da vida celestial, no que suportou nossa lerdeza.
Ordena-se-nos, porém, pedir o pão nosso, para que estejamos contentes com a
porção que o Pai celestial se digna fornecer-nos, nem ganho procuremos alcançar
mediante meios ilícitos. Enquanto isso, deve-se sustentar que nosso se faz por título
de doação, porquanto nem nossa diligência, nem nosso labor, nem nossas mãos –
como diz Moisés [Lv 26.20; Dt 8.17, 18] – por si sós nos adquirem alguma coisa, a
menos que a bênção de Deus esteja presente. Aliás, de fato nem um mínimo sequer
nos aproveitaria abundância de pão, a não ser que o alimento se nos convertesse
divinamente. E, conseqüentemente, esta liberalidade divina é necessária não menos
para os ricos do que para os pobres, porque, de celeiros e depósitos cheios, desfaleceriam
sedentos e famintos, a menos que fruíssem de seu pão por mercê de sua
graça.
A partícula hoje, ou quotidianamente, como está no outro evangelista [Lc 11.3],
de igual modo o epíteto quotidiano, lançam um freio ao desejo imoderado pelas
coisas transitórias com que costumamos arder além da medida e às quais acrescem
outros males, porque, se se depara abundância mais ampla, afetadamente a dissipamos
em prazer, deleites, ostentação e outras modalidades de fausto. E, assim somos
instados a rogar apenas quanto é bastante para nossa necessidade, e como que para
o dia, com esta confiança: uma vez que hoje o Pai celestial nos haja alimentado, não
haverá de faltar no dia de amanhã. Portanto, por maior que seja a abundância de
coisas que nos aflua, até mesmo quando os depósitos estejam abarrotado e cheios os
celeiros, contudo, convém que sempre peçamos o pão de cada dia, porque certamente
se deve ter em mira que todo bem nada é, senão até onde, derramada seja sua
bênção, o Senhor a fecunda de incremento contínuo. Ademais, o bem que está em
nossa mão, de fato nem mesmo esse é nosso, senão até onde, a cada hora, uma a
uma, o Senhor nos prodigaliza uma porçãozinha e nos permite seu uso.
Visto que mui dificilmente a soberba dos homens se deixa persuadir disto, o
Senhor testifica haver propiciado prova singular a todos os séculos, quando alimentou
seu povo no deserto com o maná, para que nos desse a saber que não só de pão
vive o homem, mas, antes, da palavra que sai de sua boca [Dt 8.3; Mt 4.4], com o
que se indica que a vida e as forças são sustentadas unicamente por seu poder, ainda
que no-lo ministra sob instrumentos corpóreos, assim como também nos costuma
ensinar com a prova contrária, quando, sempre que lhe agrade, quebranta a força e,
como ele próprio chama, o báculo do pão, para que realmente os que comem definhem
de fome e os que bebem fiquem ressequidos de sede [Lv 26.26; Ez 4.16, 17;
14.13]. Aqueles, porém, que não contentes com o pão de cada dia, antes com avidez
desenfreada desejam ardentemente coisas infindas, ou aqueles que, fartos de sua abundância e seguros no vulto de suas riquezas, não obstante a Deus suplicam com
esta oração, outra coisa não fazem senão zombar dele. Ora, os primeiros pedem o
que não queriam que fosse obtido, aliás, o que abominam ao máximo, isto é, apenas
o pão de cada dia; e, quanto podem, disfarçam em relação a Deus o sentimento de
sua avareza, quando a verdadeira oração deve derramar diante dele toda a própria
mente e tudo quanto jaz nela escondido. Os segundos, porém, suplicam o que de
modo algum esperam dele, isto é, o que julgam já ter junto a si.
Ao chamá-lo pão nosso, certamente mais sobressai, como já dissemos, a benignidade
de Deus, a qual faz nosso o que por nenhum direito nos é devido. Contudo,
não se deve repudiar o que também abordei: que se deve designar “nosso” o que
obtemos por justo e inofensivo labor; não, porém, o que se busca com imposturas ou
rapinagens, visto que é sempre alheio tudo quanto para nós adquirimos com algum
dano alheio.
Quando pedimos, nos seja dado, significa que esse pão é uma simples e graciosa dádiva
de Deus, donde quer que nos advenha, ainda quando pareça ter-se absolutamente
alcançado por nossa arte e indústria e provido por nossas mãos, quando
meramente por sua bênção nossos labores alcançam sucesso.
João Calvino