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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

PAULO E TIAGO NÃO SE CONTRADIZEM NO TOCANTE À RELAÇÃO DE FÉ E OBRAS

Nossos adversários, porém, não satisfeitos com isto, dizem que ainda nos resta enfrentar Tiago, o qual nos contradiz em termos irrefutáveis. Pois ele ensina que não só “foi Abraão justificado pelas obras” [Tg 2.21], como também “nós todos somos justificados pelas obras, não pela fé somente” [Tg 2.24]. E então? Porventura arrastarão Paulo a um conflito com Tiago? Se a Tiago têm por ministro de Cristo, é preciso interpretar suas palavras de forma que não estejam em conflito com o que Cristo disse pelos lábios de Paulo. O Espírito declara pela boca de Paulo que pela fé, não pelas obras, Abraão alcançou a justiça [Rm 4.3; Gl 3.6]; por isso, nós também ensinamos que todos são justificados pela fé, sem o concurso das obras da lei. O mesmo Espírito ensina através de Tiago que não só a justiça de Abraão, mas também a nossa, se embasam nas obras, não somente na fé. Que certamente o Espírito não se põe em conflito consigo mesmo. Portanto, como conciliar os dois apóstolos? A nossos adversários é plenamente suficiente que tenham erradicado a justiça da fé que queremos se mantenha firmada com raízes as mais profundas; quanto a restaurar a tranqüilidade das consciências, isso não lhes constitui grande preocupação. Por isso todos podem ver como se esforçam por corroer a justificação pela fé; entrementes, eles não estabelecem nenhuma meta para justiça, à qual as consciências possam ater-se. Portanto, que festejem seu triunfo, como bem queiram, desde que se vangloriem de outra vitória e não por haver suprimido toda a certeza de justiça! E esta mísera vitória a obterão de fato quando, apagada a luz da verdade, o Senhor lhes permitir que derramem as trevas de suas falsidades. Mas onde quer que a verdade de Deus subsista, não poderão conseguir nada!245 E assim nego que a tese de Tiago, com a qual persistentemente nos confrontam, como se fosse o escudo de Aquiles, lhes propicie sequer o mínimo apoio. Para que isso se faça manifesto, é preciso atentar, primeiramente, para o propósito do Apóstolo; em seguida, é preciso observar a origem de seu delírio. Como naquele tempo havia muitos – mal que costuma ser perpétuo na Igreja – que punham abertamente à mostra sua infidelidade, negligenciando e deixando de lado todas as obras que são próprias dos fiéis, contudo, não cessavam de gloriar-se do falso nome de fé, Tiago aqui ridiculariza a estulta confiança de tais indivíduos. Portanto, ele não tem o propósito de, em qualquer aspecto, enfraquecer a força da verdadeira fé; ao contrário, seu propósito era mostrar quão insensatamente esses paroleiros se vangloriavam da mera aparência de fé; e, contentes com esta, se entregavam despreocupadamente a todo desbragamento de vícios. Uma vez percebida esta condição, é fácil notar onde tropeçam nossos adversários. Ora, eles incidem em duplo paralogismo: um, na palavra fé; outro, no termo justificar. Que o Apóstolo chame fé a uma opinião fútil, que nada tem a ver com a verdadeira fé, ele o faz à guisa de concessão, em nada denegrindo sua causa, o que demonstra desde o início com estas palavras: “Que proveito há, meus irmãos, se alguém disser que tem fé, porém não tiver obras?” [Tg 2.14]. Ele não diz: “Se alguém tiver fé sem obras”; mas: se alguém se vangloria de tê-la.” Pouco depois, ainda mais claramente, onde ironicamente a faz pior que o conhecimento diabólico [Tg 2.19], e finalmente onde a denomina de “morta” [Tg 2.20]. Mas da própria definição que apresenta haverás de depreender suficientemente o que ele queria dizer. “Tu crês”, diz ele, “que Deus existe” [Tg 2.19]. Obviamente, se nessa fé nada se contêm senão que se creia existir um Deus, não surpreende que tal fé não justifique. E não é preciso pensar que isso tira algo à fé cristã, cuja natureza é bem distinta.246 Pois, de que modo a verdadeira fé justifica, senão quando nos une a Cristo, de sorte que, feitos um com ele, usufruímos da participação de sua justiça? Logo, ela não justifica por concebermos certo conhecimento da essência divina, mas por descansarmos na certeza da sua misericórdia.

João Calvino