Nossos adversários, porém, não satisfeitos com isto, dizem que ainda nos resta
enfrentar Tiago, o qual nos contradiz em termos irrefutáveis. Pois ele ensina que
não só “foi Abraão justificado pelas obras” [Tg 2.21], como também “nós todos
somos justificados pelas obras, não pela fé somente” [Tg 2.24]. E então? Porventura
arrastarão Paulo a um conflito com Tiago? Se a Tiago têm por ministro de Cristo,
é preciso interpretar suas palavras de forma que não estejam em conflito com o que
Cristo disse pelos lábios de Paulo. O Espírito declara pela boca de Paulo que pela
fé, não pelas obras, Abraão alcançou a justiça [Rm 4.3; Gl 3.6]; por isso, nós também
ensinamos que todos são justificados pela fé, sem o concurso das obras da lei.
O mesmo Espírito ensina através de Tiago que não só a justiça de Abraão, mas
também a nossa, se embasam nas obras, não somente na fé. Que certamente o Espírito
não se põe em conflito consigo mesmo. Portanto, como conciliar os dois
apóstolos?
A nossos adversários é plenamente suficiente que tenham erradicado a justiça
da fé que queremos se mantenha firmada com raízes as mais profundas; quanto a
restaurar a tranqüilidade das consciências, isso não lhes constitui grande preocupação.
Por isso todos podem ver como se esforçam por corroer a justificação pela fé;
entrementes, eles não estabelecem nenhuma meta para justiça, à qual as consciências
possam ater-se. Portanto, que festejem seu triunfo, como bem queiram, desde que
se vangloriem de outra vitória e não por haver suprimido toda a certeza de justiça! E
esta mísera vitória a obterão de fato quando, apagada a luz da verdade, o Senhor lhes permitir que derramem as trevas de suas falsidades. Mas onde quer que a verdade
de Deus subsista, não poderão conseguir nada!245
E assim nego que a tese de Tiago, com a qual persistentemente nos confrontam,
como se fosse o escudo de Aquiles, lhes propicie sequer o mínimo apoio. Para que
isso se faça manifesto, é preciso atentar, primeiramente, para o propósito do Apóstolo;
em seguida, é preciso observar a origem de seu delírio. Como naquele tempo
havia muitos – mal que costuma ser perpétuo na Igreja – que punham abertamente à
mostra sua infidelidade, negligenciando e deixando de lado todas as obras que são
próprias dos fiéis, contudo, não cessavam de gloriar-se do falso nome de fé, Tiago
aqui ridiculariza a estulta confiança de tais indivíduos. Portanto, ele não tem o propósito
de, em qualquer aspecto, enfraquecer a força da verdadeira fé; ao contrário, seu
propósito era mostrar quão insensatamente esses paroleiros se vangloriavam da mera
aparência de fé; e, contentes com esta, se entregavam despreocupadamente a todo
desbragamento de vícios.
Uma vez percebida esta condição, é fácil notar onde tropeçam nossos adversários.
Ora, eles incidem em duplo paralogismo: um, na palavra fé; outro, no termo
justificar. Que o Apóstolo chame fé a uma opinião fútil, que nada tem a ver com a
verdadeira fé, ele o faz à guisa de concessão, em nada denegrindo sua causa, o que
demonstra desde o início com estas palavras: “Que proveito há, meus irmãos, se
alguém disser que tem fé, porém não tiver obras?” [Tg 2.14]. Ele não diz: “Se alguém
tiver fé sem obras”; mas: se alguém se vangloria de tê-la.” Pouco depois,
ainda mais claramente, onde ironicamente a faz pior que o conhecimento diabólico
[Tg 2.19], e finalmente onde a denomina de “morta” [Tg 2.20].
Mas da própria definição que apresenta haverás de depreender suficientemente
o que ele queria dizer. “Tu crês”, diz ele, “que Deus existe” [Tg 2.19]. Obviamente,
se nessa fé nada se contêm senão que se creia existir um Deus, não surpreende que
tal fé não justifique. E não é preciso pensar que isso tira algo à fé cristã, cuja natureza
é bem distinta.246 Pois, de que modo a verdadeira fé justifica, senão quando nos
une a Cristo, de sorte que, feitos um com ele, usufruímos da participação de sua
justiça? Logo, ela não justifica por concebermos certo conhecimento da essência
divina, mas por descansarmos na certeza da sua misericórdia.
João Calvino