AS PROMESSAS DA LEI NÃO INDUZEM À SALVAÇÃO ATRAVÉS DO MÉRITO DAS
OBRAS, O QUAL SOMENTE À CONDENAÇÃO PODERIA CONDUZIR
Prossigamos agora também com outros argumentos mercê dos quais Satanás se
empenha, através de seus satélites, ou em demolir ou enfraquecer a justificação pela
fé. Julgo que já subtraímos a nossos caluniadores a possibilidade de acusar-nos de
sermos inimigos das boas obras; porque negamos que as obras justifiquem, não para
que não se faça nenhuma boa obra, nem tampouco para negar que as boas obras
sejam boas, mas para que não nos fiemos nelas, nem nelas nos gloriemos, nem lhes
atribuamos a salvação. Pois esta é nossa confiança, esta nossa glória, a única âncora
de nossa salvação: que Cristo, o Filho de Deus, é nosso, e nós, por nossa vez, nele
somos filhos de Deus e herdeiros do reino celeste, chamados à esperança da bemaventurança
eterna pela benignidade de Deus, não por nossa dignidade.
Mas, visto que, como foi dito, contra nós investem ainda com outras máquinas
de guerra, então avancemos também a rebatê-los. Em primeiro lugar, volvem-se
para as promessas legais que o Senhor promulgou visando aos cultores de sua lei, e
perguntam se porventura queremos que elas sejam inteiramente sem préstimo ou
eficazes. Uma vez que teria soado mal e seria ridículo dizer que são sem préstimo,
assumem como reconhecido que elas são de alguma eficácia. Daqui arrazoam que
não somos justificados pela fé somente. Pois assim fala o Senhor: “Será, pois, que,
se ouvindo estes juízos, os guardardes e cumprirdes, o Senhor teu Deus te guardará
a aliança e a misericórdia que jurou a teus pais; e amar-te-á, e abençoar-te-á, e te
fará multiplicar” etc. [Dt 7.12, 13]. Igualmente: “Mas, se deveras melhorardes vossos
caminhos e vossas obras; se deveras praticardes o juízo entre um homem e seu
próximo; se não oprimirdes o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, nem derramardes
sangue inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses, para vosso mal, eu
vos farei habitar neste lugar” etc. [Jr 7.5-7]. Não desejo recitar inutilmente mil passagens
do mesmo teor, porque, uma vez que nada diferem de sentido, serão explicadas
pela solução destas. Em síntese, Moisés testifica que na lei se propõem a bênção
e a maldição [Dt 11.26], a morte e a vida [Dt 30.15]. Portanto, assim concluem que,
ou esta bênção se torna ociosa e infrutífera, ou a justificação não é somente pela fé.
Já mostramos acima como, se nos apegamos à lei, somos destituídos de toda
bênção, somente maldição paira ameaçadora, a qual foi ordenada para todos os
transgressores [Dt 27.26]. Ora, o Senhor não promete coisa alguma, senão aos perfeitos
cultores de sua lei, os quais nenhum se acha. Permanece, pois, que toda a raça
humana é indiciada mediante a lei como sujeita à maldição e à ira de Deus, das
quais, para que se livrem, necessário se faz escapar ao poder da lei, e como que de
sua servidão guindar-se à liberdade, na verdade não àquela liberdade carnal que nos
afasta da observância da lei, nos incita à conspurcação de todas as coisas, permite
que nossa concupiscência se exceda como se as barreiras fossem rompidas ou as
rédeas, soltas; ao contrário, aquela liberdade espiritual que conforta e soergue a
consciência perturbada e consternada, mostrando-a livre da maldição e da condenação
com que a lei a premia, amarrada e constrita. Esta liberação e, por assim dizer,
alforria da sujeição à lei conseguimos quando, mediante a fé, apreendemos a misericórdia
de Deus em Cristo, pela qual somos feitos seguros e convictos da remissão
dos pecados, de cujo senso a lei nos pungia e remordia.
João Calvino