Daqui nascem numerosas questões, porquanto a Escritura faz menção de Deus
haver conferido cumprimento a certas orações que, no entanto, irromperam de ânimomui
longede sereno ou comedido. De fato, com justa causa, inflamado do fervor
da ira e da vingança, Jotão devotou os habitantes de Siquém à destruição, o qual
sobreveio mais tarde [Jz 9.20]. Dando provimento a essa execração, é como se Deus
aprovasse impulsos mal ordenados. Esse mesmo fervor arrebatou também a Sansão,
quando dizia: “Fortalece-me, ó Deus, para que tome vingança dos incircuncisos”
[Jz 16.28]. Ora, ainda que fosse misturado com algum zelo justo, entretanto, aí
imperou o desejo excessivo, e portanto vicioso de vingança. Deus atendeu. Do quê
parece poder-se concluir que ainda quando as orações não sejam conformadas ao
prescrito na Palavra, no entanto alcançam seu efeito.
Minha resposta é que, com exemplos particulares, a lei perpétua não é abolida;
além do mais, impulsos por vezes especiais foram infundidos a uns poucos homens,
nos quais aconteceu que a razão lhes fosse contrária da razão do povo comum.
Deve-se notar, pois, esta resposta de Cristo, quando os discípulos desejariam inconsideradamente
imitar o exemplo de Elias, dizendo que eles não sabiam de que espírito
haviam sido dotados [Lc 9.55]. Mas é preciso ir além: nem sempre agradam a
Deus as orações a que responde. No entanto, no que diz respeito ao exemplo, à luz
de provas claras se faz manifesto o que a Escritura ensina, isto é, que ele socorre aos
miseráveis e ouve os gemidos daqueles que, injustamente aflitos, lhe imploram ajuda;
por isso executa seus juízos, enquanto a ele sobem as queixas dos pobres, ainda
que indignas de que alcancem sejam o que for. Ora, quantas vezes aplicando punições
acerca da crueldade, das rapinagens, da violência, do desregramento e de outros
crimes dos ímpios, contendo-lhes a audácia e o furor, subvertendo-lhes também
o poder tirânico, testificou levar ajuda aos indignamente oprimidos, os quais, no
entanto, ao orarem, davam golpes incertos?
E um Salmo ensina claramente que não são destituídas de efeito as orações que,
no entanto, não penetram o céu pela fé. Pois ele combina orações que, do senso da
própria natureza, a necessidade arranca aos incrédulos, não menos que aos piedosos,
aos quais, no entanto, os fatos demonstram que Deus se faz propício [Sl 107.6,
13, 19, 28]. Deus, porventura, com tal condescendência atesta que elas lhe são agradáveis?
De fato, sua misericórdia ilustra muito bem a circunstância de que, inclusive,
as orações dos incrédulos não são recusadas; e além de estimular aos seus a que
orem, vendo que mesmo os gemidos dos ímpios às vezes não deixam de alcançar o
efeito desejado.
Deste modo dissemos que Deus se deixou comover pelo arrependimento simulado
de Acabe [2Rs 21.29], para que, mediante esta evidência, provasse quão pronto está a ouvir seus eleitos, quando para aplacá-lo eles exibem conversão verdadeira. E
por isso no Salmo ele contende com os judeus, porque, havendo experimentado ser
ele acessível a seus rogos [Sl 106.8-12], hajam revertido pouco depois à obstinação
de sua mente [Sl 106.13-43]. Isto também se patenteia cristalinamente da história
dos Juízes: de fato os israelitas choraram muitas vezes, embora suas lágrimas fossem
enganosas, no entanto foram libertados das mãos dos inimigos. Portanto, assim
como Deus projeta indiscriminadamente seu sol sobre bons e maus [Mt 5.45], assim
tampouco despreza o pranto daqueles cuja causa é justa e cujas misérias são dignas
de auxílio. Não obstante, ele não os ouve para salvá-los, não mais do que demonstra
salvar aos que desprezam sua bondade quando os provê de alimento.278
Muito mais difícil parece ser a questão em relação a Abraão e a Samuel, dos
quais um orou em favor dos habitantes de Sodoma, sem ter instituída nenhuma
palavra de Deus [Gn 18.23-33]; o outro inclusive orou em favor de Saul contra clara
proibição [1Sm 15.11; 16.1]. A mesma é a razão de Jeremias, que pediu fosses
sustada a ruína da cidade [Jr 32.16-25], porque, embora sofresse repulsa, contudo
parece improcedente dizer que eram destituídos de fé. Com efeito, espero que esta
solução satisfaça aos leitores moderados: os que se escudaram em princípios gerais,
através dos quais Deus ordena que se contemple também com misericórdia os indignos,
não eram inteiramente destituídos de fé, embora, na própria natureza do
caso, a opinião os haja enganado.
Em alguma parte, Agostinho escreve sabiamente: “Como”, diz ele, “os santos
oram em fé quando pedem a Deus contra a fé que ele decretou? Sem dúvida, porque
oram segundo sua vontade, não aquela vontade secreta e imutável, mas aquela que
lhes inspira, para que os ouça de outro modo, como sabiamente distingue.”279 Certamente
é uma sentença admirável, porque por seu incompreensível desígnio de tal
forma tempera concretização das coisas, que não sejam contrárias às preces dos
santos, que são, a um tempo, entrelaçadas de fé e de erro. Entretanto, isso não deve
valer mais para imitação, a ponto de servir de justificativa aos próprios santos, os
quais não nego que excedem o limite. Por isso, onde não haja uma promessa definida,
deve-se rogar a Deus em termos condicionais. Com isto se coaduna essa afirmação
de Davi: “Desperta-te para com o juízo que ordenaste” [Sl 7.6], porquanto prova
que tinha uma promessa especial para pedir o benefício temporal.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32