Afinal, depois que se cansaram de perverter a Escritura, recorrem às sutilezas e
sofismas. Arrazoam cavilosamente assim: a fé é em algum lugar chamada obra [Jo
6.29]; e daí concluem erroneamente que a fé opomos às obras. Como se realmente a
fé, até onde é obediência à vontade divina, nos granjeia justiça por seu mérito pessoal,
e não antes porque, abraçando a misericórdia de Deus, ela sela em nosso coração
a justiça de Cristo que nos é oferecida na pregação do evangelho. Que os leitores
me perdoem se não me demoro a pulverizar tais tolices, pois por sua própria
debilidade elas mesmas se despedaçam suficientemente, sem impacto alheio.
Entretanto, é preciso discutir de passagem uma objeção que tem certa aparência
de razão, para que não cause dificuldade a alguns, particularmente aos inexperientes.
Uma vez que o senso comum dita que a mesma regra se aplica aos contrários, e
os pecados, um a um, nos são imputados como infrações da justiça, dizem ser apropriado
que também às boas obras, uma a uma, se atribua o louvor de justiça. Não me
satisfazem os que replicam que a condenação dos homens procede propriamente da
mera incredulidade, não dos pecados particulares. Certamente que sou do mesmo
parecer que eles, de que a incredulidade é a fonte e raiz de todos os males. Pois ela
é o primeiro afastamento de Deus, à qual seguem depois as transgressões particulares
contra a lei. Mas, porque ao estimar-se sua justiça ou sua injustiça, parecem
estatuir o mesmo peso das obras boas das obras más; nisto sou obrigado a discordar
deles.
Ora, a justiça das obras é a perfeita obediência da lei. Conseqüentemente, não
podesser justo por meio das obras, exceto se percorreres a linha reta ao longo de
todo o decurso da vida. E tão logo te apartes dela, na injustiça caíste. Disto é evidente
que a justiça não resulta de uma ou poucas obras, mas da inflexível e contínua
observância da vontade divina. Muitíssimo diverso, porém, é o critério de julgar a
injustiça. Pois aquele que fornicou, ou furtou, o mesmo é réu de morte por um só
delito, porquanto cometeu ofensa contra a majestade de Deus. Por isso, esses nossos
sofismadores tropeçam, os quais não dão atenção a essa afirmação de Tiago:
“Aquele que pecar em um ponto, se faz culpado de todos, porque aquele que proibiu
matar, proibiu também furtar” etc. [Tg 2.10, 11]. E assim não deve parecer absurdo
quando dizemos que a morte é o justo salário de cada pecado, porquanto os pecados,
um a um, são dignos da justa indignação e vingança de Deus. Contudo, serás
um argumentador insípido se, em contrário, deduzires que por uma só obra boa o
homem pode reconciliar-se com Deus, o qual, por seus muitos pecados, merece sua
ira.
João Calvino