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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

DO PRINCÍPIO DOS OPOSTOS NÃO SE INFERE MÉRITO JUDICIAL ÀS OBRAS

Afinal, depois que se cansaram de perverter a Escritura, recorrem às sutilezas e sofismas. Arrazoam cavilosamente assim: a fé é em algum lugar chamada obra [Jo 6.29]; e daí concluem erroneamente que a fé opomos às obras. Como se realmente a fé, até onde é obediência à vontade divina, nos granjeia justiça por seu mérito pessoal, e não antes porque, abraçando a misericórdia de Deus, ela sela em nosso coração a justiça de Cristo que nos é oferecida na pregação do evangelho. Que os leitores me perdoem se não me demoro a pulverizar tais tolices, pois por sua própria debilidade elas mesmas se despedaçam suficientemente, sem impacto alheio.
Entretanto, é preciso discutir de passagem uma objeção que tem certa aparência de razão, para que não cause dificuldade a alguns, particularmente aos inexperientes. Uma vez que o senso comum dita que a mesma regra se aplica aos contrários, e os pecados, um a um, nos são imputados como infrações da justiça, dizem ser apropriado que também às boas obras, uma a uma, se atribua o louvor de justiça. Não me satisfazem os que replicam que a condenação dos homens procede propriamente da mera incredulidade, não dos pecados particulares. Certamente que sou do mesmo parecer que eles, de que a incredulidade é a fonte e raiz de todos os males. Pois ela é o primeiro afastamento de Deus, à qual seguem depois as transgressões particulares contra a lei. Mas, porque ao estimar-se sua justiça ou sua injustiça, parecem estatuir o mesmo peso das obras boas das obras más; nisto sou obrigado a discordar deles. Ora, a justiça das obras é a perfeita obediência da lei. Conseqüentemente, não podesser justo por meio das obras, exceto se percorreres a linha reta ao longo de todo o decurso da vida. E tão logo te apartes dela, na injustiça caíste. Disto é evidente que a justiça não resulta de uma ou poucas obras, mas da inflexível e contínua observância da vontade divina. Muitíssimo diverso, porém, é o critério de julgar a injustiça. Pois aquele que fornicou, ou furtou, o mesmo é réu de morte por um só delito, porquanto cometeu ofensa contra a majestade de Deus. Por isso, esses nossos sofismadores tropeçam, os quais não dão atenção a essa afirmação de Tiago: “Aquele que pecar em um ponto, se faz culpado de todos, porque aquele que proibiu matar, proibiu também furtar” etc. [Tg 2.10, 11]. E assim não deve parecer absurdo quando dizemos que a morte é o justo salário de cada pecado, porquanto os pecados, um a um, são dignos da justa indignação e vingança de Deus. Contudo, serás um argumentador insípido se, em contrário, deduzires que por uma só obra boa o homem pode reconciliar-se com Deus, o qual, por seus muitos pecados, merece sua ira.

João Calvino