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sábado, 22 de setembro de 2018

QUARTA REGRA DA ORAÇÃO CORRETA: FÉ SÓLIDA E ESPERANÇA CONFIANTE DE QUE O SENHOR, MISERICORDIOSO, NÃO DEIXARÁ DE ATENDER COM MAGNANIMIDADE E BENEVOLÊNCIA

Por fim, a quarta regra é que, assim prostrados e subjugados em verdadeira humildade, não obstante sejamos animados a orar, com segura esperança de alcançar resposta. Parecem coisas bem contrárias à primeira vista unir com o sentimento da justa cólera de Deus, a confiança em seu favor; e no entanto, ambas as coisas estão muito de acordo entre si, se oprimidos por nossos vícios, somos levantados pela mera bondade de Deus. Ora, como ensinamos previamente, que arrependimento e fé, elementos dos quais, entretanto, um nos aterra, o outro nos arrebata de alegria, são parceiros ligados entre si de um vínculo inseparável, assim nas preces importa que se fundam em reciprocidade. E Davi esprime este acordo, em poucas palavras: “Eu”, diz ele, “entrarei em tua casa na multidão de tua bondade; com temor adorarei no templo de tua santidade” [Sl 5.7]. Sob a bondade de Deus ele compreende a fé, não excluindo, enquanto isso, o temor, visto que não só sua majestade nos compele à reverência, como também, esquecidos de toda soberba e segurança própria, sob o medo nos contém o senso de nossa própria indignidade. Na verdade, não entendo confiança como sendo a que afague a mente com suave e perfeita quietude, liberada de todo senso de ansiedade, pois aquietar-se assim tão placidamente pertence àqueles que, usufruindo de todas as coisas conforme o desejo, não deixam tanger por nenhuma preocupação, não são abrasados por nenhum desejo, nenhum temor os atormenta. Aos santos, porém, o melhor estímulo para a invocação de Deus é que, enquanto são acossados por sua necessidade, são acometidos por sua inquietação e pouco falta a que desfalecidos se quedem em si mesmos, até que, oportunamente, a fé os socorra; pois que entre angústias tais, de tal modo se manifesta a bondade de Deus, que de fato gemem, cansados pelo peso dos males presentes, até se esforçam e se sentem opressos pelo temor de males maiores; contudo, nela confiados, não só superam a dificuldade de tê-las de suportar, e são confortados, mas ainda nutrem esperança de escape e livramento. Portanto, convém que a oração do homem piedoso emerja de uma outra dessas duas disposições; além disso, a uma e outra contenha e represente. Isto é, que gema com os males presentes e que ansiosamente se arreceie de que seja acometido por novos vindouros; contudo, ao mesmo tempo, em Deus se refugie, de modo nenhum duvidando de que ele esteja pronto a estender sua mão ajudadora. Pois, é espantoso como Deus se irrita com nossa falta de confiança, se dele rogamos beneficência pela qual não nutrimos esperança. Conseqüentemente, nada mais próprio à natureza das orações que prescrever-se e estatuir-se-lhes esta lei: que não se precipitem às cegas, mas que sigam a fé a precedê-las como um guia. Cristo chama a todos nós a este princípio, com esta exclamação: “Por isso vos digo que todas as coisas que pedirdes, orando, crede receber, e as tereis” [Mc 11.24]. O mesmo confirma também em outro lugar: “Tudo quanto tiverdes pedido em oração, crendo” etc. [Mt 21.22]. Com isso concorda Tiago: “Se alguém tem falta de sabedoria, peça-a àquele que a todos dá liberalmente, nem recrimina; peça, porém, com fé, nada duvidando” [Tg 1.5, 6]. Onde, a fé opondo à dúvida, com muita propriedade expressa o poder desta. Não é menos notável o que também acrescenta: que nenhum proveito teriam os que invocam a Deus perplexos e medrosos, nem em seus ânimos consideram que serão ou não ouvidos [Tg 1.7], os quais até compara às ondas que são variadamente revolvidas pelo vento e levadas em torvelinhos [Tg 1.6]. Do quê designa ele em outro lugar [Tg 5.15], ser a oração da fé uma legítima oração. Então, quando tantas vezes Deus declara que a cada um haverá de dar segundo sua fé [Mt 8.13; 9.29; Mc 11.24], evidenciaque nada podemos conseguir à parte da fé. Em suma, é a fé que alcança tudo quanto se concede no ato de orar. Isto significa essa famosa sentença de Paulo, para a qual pouco atentam os homens sem discernimento: “Como alguém invocará àquele em quem não crêem? Quem, porém, crerá, a não ser que ouça?” [Rm 10.14]. “A fé, porém, procede do ouvir; o ouvir procede da Palavra de Deus” [Rm 10.17]. Porque, deduzindo, passo por passo, o princípio da oração da fé, demonstra com toda clareza que não é possível que alguém invoque sinceramente a Deus, a não ser aquele a quem, pela pregação do evangelho, se faz conhecer sua clemência e bondade; aliás, tenha sido exposta de forma bem íntima.

João Calvino