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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

TAMPOUCO É PROCEDENTE A TESE DE QUE A JUSTIFICAÇÃO SEJA RESULTANTE DO AMOR, O QUAL TANTO SE EXALTA NAS ESCRITURAS

Estas afirmações de Paulo são também adicionadas: “Se eu tiver toda fé, ao ponto de remover montanhas, mas não tiver amor, nada sou” [1Co 13.2]; igualmente: “Agora permanecem a esperança, a fé, a caridade, mas o maior destes é a caridade” [1Co 13.13]; ainda: “Acima de todas as coisas tende a caridade, que é o vínculo da perfeição” [Cl 3.14]. Das primeiras duas passagens contendem nossos fariseus, de que somos justificados pelo amor antes que pela fé, certamente, como dizem eles, pela virtude mais forte. Mas esta sutileza se refuta com nenhuma dificuldade. Pois já expusemos em outro lugar que as coisas que se dizem na primeira passagem nada têm a ver com a verdadeira fé. A outra também a explicamos em função da verdadeira fé, como diz Paulo que o amor é maior que a fé: não que seja mais meritório, mas porque é mais frutífero, visto que se estende mais amplamente, porque serve a mais propósitos, visto que está sempre a florescer, enquanto que o uso da fé é mantido por apenas um tempo. Se contemplamos a excelência, com razão o amor de Deus deve manter o primeiro lugar. Paulo aqui não está tratando dessa excelência. Sem dúvida que ele está insistindo somente com isto: que cada um, por sua vez, nos edifiquemos em amor mútuo no Senhor. Imaginemos, porém, que o amorsupera à fé em todos os aspectos. Entretanto, quem de são juízo, quem de fato de cérebro plenamente saudável conclua disso que ela justifica mais? O poder de justificar que à fé se arroga não se situa na dignidade de obra. Na mera misericórdia de Deus e mérito de Cristo se assenta nossa justificação, a qual, visto que a fé a apreende, por isso se diz que ela justifica. Ora, se aos adversários interrogues em que sentido atribuem eles a justificação à caridade, haverão de responder: Porque seu exercício é aprazível a Deus, por seu mérito, da aceitação da bondade divina se nos imputa justiça. Daqui vês quão belamente procede seu argumento. Sustentamos que a fé justifica não porque nos mereça a justiça por sua dignidade pessoal, mas porque é o instrumento através do qual obtemos a justiça gratuita de Cristo. Esses, deixada de parte a misericórdia de Deus e sem levar Cristo em conta, em quem está a suma da justiça, contendem que somos justificados pelo benefício da caridade, porque ela supera à fé em excelência. Exatamente como se alguém dissesse que um rei é mais apto para confeccionar um sapato que um sapateiro, visto ser infinitamente mais eminente. Este mero argumento é para ampla evidência de que todas as escolas da Sorbonne de fato não degustam sequer com as pontas dos lábios, o que seja a justificação pela fé. Mas, se a esta altura alguém, amigo de querelas, interpela por que em tão breve intervalo tomamos em acepções diversas o termo fé em Paulo, desta interpretação me assiste razão não fraca. Ora, uma vez que esses dons que Paulo enumera de certo modo se compreendam sob a fé e a esperança, porque contemplam ao conhecimento de Deus, a todos eles os abraça katV avnakefalai,wsin [kat’anak$phalaí)sin – à guisa de sumarização] sob o nome de fé e esperança, como se estivesse a dizer: “A profecia, as línguas, a graça de interpretá-las e o conhecimento têm este escopo: que nos conduzam ao conhecimento de Deus; mas, nesta vida, conhecemos a Deus somente através da esperança e da fé. Quando, pois, refiro à fé e à esperança, compreendo, ao mesmo tempo, todos estes dons. Permanecem, pois, estas três: a esperança, a fé e a caridade,isto é, por maior que seja a variedade de dons, todos aqui se compreendem. Entre estes, a caridade desfruta de primazia” etc. [1Co 13.13]. Da terceira passagem [Cl 3.14] inferem: Se a caridade é o vínculo da perfeição, portanto também vale para a justiça, que outra coisa não é senão a perfeição. Antes de mais nada, para que omitamos que perfeição Paulo aqui se refere quando os membros de uma igreja devidamente constituída se acham bem unidos entre si e confessamos que pela caridadenos tornamos perfeitos diante de Deus, no entanto, o que de novo eles trazem à baila? Pois sempre replicarei em contrário que jamais alcançamos essa perfeição, a menos que cumpramos todas as obrigações da caridade; e disso infiro porque, uma vez que todos estejam mui afastados do cumprimento da caridade, toda a esperança de perfeição lhes é cortada.

João Calvino