Sobremodo dignas de ser observadas são uma e outra destas duas coisas. Primeiro,
que todo aquele que se predispõe a orar, a isso aplique seus sentidos e esforços,
sem se deixar, como costuma acontecer, distrair por pensamentos divagantes,
porquanto nada é mais contrário à reverência de Deus que essa leviandade, testemunha
de uma liberdade demasiado frívola e desligada de todo temor. Nesta matéria,
tanto mais temos de aplicar todas as nossas forças, quanto mais difícil percebemos
por experiência,269 pois ninguém se concentra tanto em oração que não sinta que se
insinuem sorrateiramente muitos pensamentos divergentes que, ou interrompem o curso
da oração, ou o retardam por algum rodeio ou digressão. Aqui vem a lume, porém,
quão indigno seja, quando Deus nos admite a uma conversa íntima com ele, abusar de
sua tão grande bondade e gentileza, misturando coisas sagradas com profanas; enquanto
a mente não nos mantém ligados a ele com a devida reverência; mas, exatamente
como se estivéssemos tratando com um homem qualquer, interrompemos a
conversação quando oramos, distraindo-nos com tudo o que se nos ocorre.
Saibamos, pois, que ninguém se cinge correta e adequadamente para orar senão
aqueles aos quais a majestade de Deus oportunamente dispõe, de sorte que, desvencilhados
de cuidados e preocupações terrenas, a ela se acheguem. E isto significa a
cerimônia de elevação de mãos: que os homens se lembrem de que estão muitíssimo
distantes de Deus, a menos que elevem para o alto seus pensamentos. Assim também
se diz no Salmo: “A ti elevo minha alma” [Sl 25.1]. E a Escritura usa freqüentemente
esta forma de falar: alçar a oração [Is 37.4], para que não se chafurdem em
suas escórias os que desejam ser ouvidos por Deus [Jr 48.11; Sf 1.12]. Em suma,
quanto mais generosamente Deus age conosco, convidando-nos afavelmente a que
descarreguemos em seu seio nossos cuidados, tanto menos escusáveis somos nós,
se acima de todas as demais coisas já não pesa em nós tão preclaro e incomparável
beneficio seu não nos impelir a si, de sorte que, a orar seriamente, apliquemos nossos
esforços e sentidos, o que não pode acontecer, a não ser que, valentemente a
lutar com os estorvos, ponha a mente acima de todos eles.
Formulamos outra proposição: nada peçamos senão aquilo que nos permite Deus.
Pois, ainda que nos mande que derramemos nossos corações diante dele [Sl 62.8],
entretanto, não está com isso afrouxando as rédeas, displicentemente, às disposições
estultas e depravadas; e, enquanto promete que haverá de fazer segundo a
vontade dos piedosos, sua indulgência não procede até o ponto de que se lhes submeta
ao arbítrio. Com efeito, em um e outro desses dois aspectos, a cada passo
gravemente se peca, uma vez que não só temerariamente, sem pejo, sem reverência, muitos ousam importunar a Deus acerca de seus desvarios, e diante de seu trono
impudentemente apresentar tudo quanto em sonho lhes pareça aprazível, como também
os domina ou estultícia ou insensatez tão profunda que ousam impor a Deus os
mais ignóbeis desejos, dos quais os homens deveriam se envergonhar profundamente
de estar cônscios. Esta audácia certos homens profanos escarneceram, e até a abominaram.
Entretanto, o vício mesmo tem sempre reinado, e daqui aconteceu que os ambiciosos
adotassem para si, por patrono, a Júpiter; os avarentos, a Mercúrio; os ávidos
de saber, a Apolo e Minerva; os belicosos, a Marte; os libidinosos, a Vênus. Assim
também hoje, como há pouco frisei, em suas preces os homens indulgem, em liberdade
maior, a seus desejos ilícitos do que se pares com pares estivessem jocosamente a
conversar. Deus, porém, não permite que sua complacência seja assim tida em mofa;
ao contrário, vindicando a si seu direito, sujeita a seu domínio nossos desejos e os
contém com um freio. Por isso, impõe-se suster este postulado de João: “Esta é nossa
confiança, que se pedirmos algo segundo sua vontade, ele nos ouve” [1Jo 5.14].
Por outro lado, visto que tão grande perfeição se acha muito acima de nossas
capacidades, torna-se necessário buscar remédio que socorra a essa deficiência. Da
mesma forma que importa direcionar para Deus a acuidade da mente, também se faz
necessário que o afeto do coração siga o mesmo rumo. Ambos, porém, ficam muito
abaixo; mais verdadeiramente, esgotam-se de fadiga e perdem as forças, ou são
levados à direção contrária. Por isso, para que Deus socorra a esta fraqueza, em
nossas orações ele nos dá o Espírito por preceptor, para que dite o que é reto e nos
modere os sentimentos. Ora, “porque não sabemos orar como convém, por isso ele
nos auxilia e intercede por nós com gemidos inexprimíveis” [Rm 8.26]; não que ele
realmente ore ou gema, mas porque suscita em nós confiança, desejos, suspiros,
cuja obtenção de modo nenhum seriam suficientes as forças de nossa natureza. Não
é sem motivo que Paulo chama gemidos inexprimíveis que os fiéis emitem sob a
direção do Espírito, visto que não ignoram os que são verdadeiramente exercitados
em orações, que a tal ponto se vêem perplexos por cegas ansiedades que mal conseguem
proferir o que é apropriado. Na verdade, quando tentam sequer balbuciar,
hesitam embaraçados. Do quê se segue que orar corretamente é um dom singular.
Essas coisas não são ditas porque nós mesmos, favorecendo a indolência própria,
releguemos ao Espírito de Deus a responsabilidade orar e nos entorpeçamos
nesse descaso ao qual somos mais do que suficientemente inclinados, quando se
ouvem as vozes ímpias de certos indivíduosde que se deve aguardar indolentemente
até que ele sobrepuje nossa mente ocupada em outra parte; mas, antes, que, entediados
de nossa inércia e obtusidade, busquemos do Espírito tal ajuda. Tampouco,
Paulo, quando ordena orar no Espírito [1Co 14.15], por isso deixa de exortar à
vigilância, significando que de tal modo vigora o impulso do Espírito em plasmar as
orações, que de modo algum nos impede nem retarda o esforço, porquanto nesta
parte Deus quer pôr à prova quão eficazmente a fé nos acione o coração.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32