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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

OS CHAMADOS SANTOS DO ROMANISMO, CUJAS FUNÇÕES AFINS NÃO SE EQUIPARAM ÀS DOS ANJOS, NÃO PODEM EXERCER A FUNÇÃO DE INTERCESSÃO

Mas, o que se esforçam por estabelecer – que intercessão dessa natureza parece estar apoiada na autoridade da Escritura –, nisto laboram em vão. Dizem que lêem com freqüência orações de anjos. Não só isso, mas também dizem que as orações dos fiéis são levadas por suas mãos à presença de Deus. Mas, se ficam satisfeito em comparar os santos, os quais se desobrigaram da presente vida, com os anjos, é preciso provar-se que estes são espíritos ministrantes, aos quais foi delegado o ministério de cuidar de nossa salvação [Hb 1.14]; aos quais se confiou o encargo de guardar-nos em todos os nossos caminhos [Sl 91.11]; para que andem a nosso redor [Sl 34.7]; para que nos avisem e nos consolem; para que, por nós, se postem de atalaia. Todas estas coisas são conferidas a estes, porém de modo nenhum àqueles. Mas quão sem propósito é que os anjos se parecem com os santos falecidos, o que suficientemente se evidencia à luz de tantas funções diversas mercê das quais a Escritura distingue uns dos outros. Ninguém ousará desempenhar as funções de causídico perante um juiz terreno, a não ser que seja admitido a advogar; daí, de onde procede tão grande petulância a vermes que impinjam a Deus patronos aos quais na Escritura não se lê que fosse outorgado tal ofício? Deus quis incumbir os anjos do cuidado de nossa salvação, donde não só freqüentam as reuniões sacras, mas inclusive a igreja é seu teatro em que contemplam, extasiados, a variada e multiforme sabedoria de Deus [Ef 3.10]. Os que transferem a outros o que lhes é peculiar, por certo que confundem e pervertem a ordem estabelecida por Deus, a qual devia ser inviolável. Persistem, com a mesma prontidão, em citar outros testemunhos. Disse Deus a Jeremias: “Se Moisés e Samuel se postassem diante de mim, ainda assim minha alma não se inclinaria para este povo” [Jr 15.1]. Teria Jeremias, perguntam, falado acerca de mortos, se não estivesse certo de que intercedem pelos vivos? Não obstante, eu concluo, em contrário, como por este texto se vê claramente que nem Moisés nem Samuel intercederam então pelo povo de Israel, é sinal de que os mortos não oram pelos vivos. Pois, quem dos santos se imputaria o empenho pela salvação do povo, deixando Moisés de fazê-lo enquanto vivia, o qual a todos os demais superou neste aspecto, por ampla distância? Portanto, se porventura se põem a correr atrás dessas sutilezas frívolas – os mortos intercedem pelos vivos, porquanto o Senhor disse: “caso eles intercedessem” –, eu muito mais garbosamente argumentarei deste modo: Na extrema necessidade do povo, não era Moisés que estava a interceder, acerca de quem se diz: “caso intercedesse.” E assim se faz patente que a bondade e paterna solicitude de Moisés não intercedem por ninguém, uma vez que todos se encontram bem distantes da humanidade. Aliás, eles conseguem isto com suas cavilações: eles se ferem com essas armas com as quais se julgavam excelentemente equipados. Com efeito, é por demais ridículo torcer assim uma afirmação simples, porquanto o Senhor está apenas declarando que não haverá de poupar as abominações do povo, ainda que sucedesse que Moisés e Samuel viessem a ser seus patronos, a cujas orações se mostrasse de tal modo indulgente. Este sentido se revela com muita clareza à luz de uma passagem semelhante de Ezequiel: “Ainda que estivessem no meio dela estes três homens, Noé, Daniel e Jó, eles por sua justiça livrariam apenas suas almas” [Ez 14.14]; onde não há dúvida de que desejasse indicar: “se acontecesse de dois deles voltarem a viver”, pois o terceiro ainda vivia nesse tempo, isto é, Daniel, o qual, sem a menor sombra de dúvida, estava na primeira flor da adolescência e é incomparável exemplo de piedade. Deixemos, pois, de parte aqueles que a Escritura mostra claramente haverem terminado sua carreira. Por isso, Paulo, quando fala a respeito de Davi, não ensina que ele ajuda a posteridade com orações, mas apenas que serviu à sua época [At 13.36].

João Calvino