Mas, o que se esforçam por estabelecer – que intercessão dessa natureza parece
estar apoiada na autoridade da Escritura –, nisto laboram em vão. Dizem que lêem
com freqüência orações de anjos. Não só isso, mas também dizem que as orações
dos fiéis são levadas por suas mãos à presença de Deus. Mas, se ficam satisfeito em
comparar os santos, os quais se desobrigaram da presente vida, com os anjos, é
preciso provar-se que estes são espíritos ministrantes, aos quais foi delegado o ministério
de cuidar de nossa salvação [Hb 1.14]; aos quais se confiou o encargo de
guardar-nos em todos os nossos caminhos [Sl 91.11]; para que andem a nosso redor
[Sl 34.7]; para que nos avisem e nos consolem; para que, por nós, se postem de
atalaia. Todas estas coisas são conferidas a estes, porém de modo nenhum àqueles.
Mas quão sem propósito é que os anjos se parecem com os santos falecidos, o
que suficientemente se evidencia à luz de tantas funções diversas mercê das quais a
Escritura distingue uns dos outros. Ninguém ousará desempenhar as funções de
causídico perante um juiz terreno, a não ser que seja admitido a advogar; daí, de
onde procede tão grande petulância a vermes que impinjam a Deus patronos aos
quais na Escritura não se lê que fosse outorgado tal ofício? Deus quis incumbir os
anjos do cuidado de nossa salvação, donde não só freqüentam as reuniões sacras,
mas inclusive a igreja é seu teatro em que contemplam, extasiados, a variada e
multiforme sabedoria de Deus [Ef 3.10]. Os que transferem a outros o que lhes é
peculiar, por certo que confundem e pervertem a ordem estabelecida por Deus, a
qual devia ser inviolável.
Persistem, com a mesma prontidão, em citar outros testemunhos. Disse Deus a
Jeremias: “Se Moisés e Samuel se postassem diante de mim, ainda assim minha
alma não se inclinaria para este povo” [Jr 15.1]. Teria Jeremias, perguntam, falado
acerca de mortos, se não estivesse certo de que intercedem pelos vivos? Não obstante,
eu concluo, em contrário, como por este texto se vê claramente que nem Moisés
nem Samuel intercederam então pelo povo de Israel, é sinal de que os mortos não
oram pelos vivos. Pois, quem dos santos se imputaria o empenho pela salvação do
povo, deixando Moisés de fazê-lo enquanto vivia, o qual a todos os demais superou
neste aspecto, por ampla distância?
Portanto, se porventura se põem a correr atrás dessas sutilezas frívolas – os
mortos intercedem pelos vivos, porquanto o Senhor disse: “caso eles intercedessem”
–, eu muito mais garbosamente argumentarei deste modo: Na extrema necessidade
do povo, não era Moisés que estava a interceder, acerca de quem se diz: “caso intercedesse.” E assim se faz patente que a bondade e paterna solicitude de
Moisés não intercedem por ninguém, uma vez que todos se encontram bem distantes
da humanidade. Aliás, eles conseguem isto com suas cavilações: eles se ferem
com essas armas com as quais se julgavam excelentemente equipados. Com efeito,
é por demais ridículo torcer assim uma afirmação simples, porquanto o Senhor está
apenas declarando que não haverá de poupar as abominações do povo, ainda que
sucedesse que Moisés e Samuel viessem a ser seus patronos, a cujas orações se
mostrasse de tal modo indulgente.
Este sentido se revela com muita clareza à luz de uma passagem semelhante de
Ezequiel: “Ainda que estivessem no meio dela estes três homens, Noé, Daniel e Jó,
eles por sua justiça livrariam apenas suas almas” [Ez 14.14]; onde não há dúvida de
que desejasse indicar: “se acontecesse de dois deles voltarem a viver”, pois o terceiro
ainda vivia nesse tempo, isto é, Daniel, o qual, sem a menor sombra de dúvida,
estava na primeira flor da adolescência e é incomparável exemplo de piedade. Deixemos,
pois, de parte aqueles que a Escritura mostra claramente haverem terminado
sua carreira. Por isso, Paulo, quando fala a respeito de Davi, não ensina que ele
ajuda a posteridade com orações, mas apenas que serviu à sua época [At 13.36].
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32