Total de visualizações de página

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

A BASE PRECÁRIA DA CONFISSÃO AURICULAR, A IMPROCEDÊNCIA DO ARGUMENTO CALCADO NA APRESENTAÇÃO AOS SACERDOTES DOS LEPROSOS CURADOS

Quanto à confissão, sempre foi ingente a luta entre os canonistas e os teólogos escolásticos; estes a contenderem que a confissão é ordenada por preceito divino, aqueles a protestarem que ela se preceitua apenas de ordenanças eclesiásticas. Com efeito, neste embate se fez manifesto o notório descaramento desses teólogos, que corromperam e torceram à força tantas quantas passagens da Escritura que citavam em abono de sua causa. E quando viram que de fato nem assim se podia obter o que postulavam, os que queriam parecer mais argutos que os demais resvalaram neste subterfúgio: que a confissão, no tocante à substância, é provinda do direito divino, mas a forma ela a recebeu depois do direito positivo. Com efeito, é assim que os que os são mais ineptos entre os formalistas atribuem a citação ao direito divino, porquanto foi dito: “Adão, onde estás?” [Gn 3.9]; de igual modo a exceção, visto que Adão respondeu, de modo a fazer exceção: “A esposa que me deste etc.” [Gn 3.12]; contudo, sustentam que a forma foi dada pelo direito civil a um e a outro desses dois elementos forenses. Vejamos, porém, com que argumentos provam eles que esta confissão, formada ou informada, é uma ordenança de Deus. O Senhor, dizem eles, enviou os leprosos aos sacerdotes [Mt 8.4; Mc 1.44; Lc 5.14; 17.14]. E daí? Porventura os enviou a fazer confissão? Quem já ouviu que os sacerdotes levitas foram incumbidos a ouvir confissões? Por isso recorrem a alegorias. Foi sancionado na lei mosaica que os sacerdotes distinguissem entre lepra e lepra [Lv 14.1-32]. O pecado é a lepra espiritual. Portanto, era ofício dos sacerdotes pronunciar-se a respeito. Antes que eu responda, pergunto, de passagem, se esta referência os faz juízes da lepra espiritual, por que arrogam para si o conhecimento da lepra natural e carnal? Evidentemente, isso não equivale a zombar das Escrituras? A lei atribui aos sacerdotes levitas o reconhecimento da lepra; então o usurpemos para nós; o pecado é a lepra espiritual; então sejamos também juízes do pecado! Agora respondo que, transferido o sacerdócio, ocorre necessariamente transferência da lei [Hb 7.12]. Todas as funções sacerdotaisforam transferidas para Cristo; nele se cumpriram e se consumaram. Portanto, para ele só se transferiu todo o direito e honra do sacerdócio. Se gostam tanto de andar à caça de alegorias, então ponham diante de si a Cristo por sacerdote único e que o tribunal lhe cumulem da livre jurisdição de todas as coisas. Isso admitiremos facilmente. Além do mais, essa alegoria é improcedente, a qual põe entre as cerimônias uma lei puramente civil. Então, por que Cristo envia os leprosos aos sacerdotes? Para que os sacerdotes não o acusassem falsamente de violar a lei, visto que ordenava se apresentasse perante o sacerdote a pessoa curada de lepra e fosse purificada mediante um sacrifício oferecido, ordena que os leprosos purificados fizessem as coisas que eram da lei. “Ide”, diz ele, “mostrai-vos aos sacerdotes” [Lc 17.14] e “oferecei a oferenda que Moisés preceituou na lei, para que lhes seja para testemunho” [Mt 8.4]. E de fato este milagre lhes seria para testemunho: teriam que pronunciá-los leprosos, agora os pronunciam curados. Porventura não são obrigados, queiram ou não, a tornar-se testemunhas dos milagres de Cristo? Cristo lhes permite verificar seu milagre. Não o podem negar. Entretanto, porque relutam ainda a reconhecê-lo, este fato lhes é para testemunho. Assim, em outro lugar: “Será pregado este evangelho em todo o mundo como um testemunho a todos os povos” [Mt 24.14]. Igualmente: “Sereis conduzidos à presença de reis e governadores para testemunho perante eles” [Mt 10.18], isto é, para que fossem mais fortemente convencidos no julgamento de Deus. Ora, se preferem concordar com Crisóstomo, também ele ensina que Cristo fez isso por causa dos judeus, para que não fosse tido por transgressor da lei. Se bem que em coisa tão clara é de causar vergonha que se busque o apoio de algum homem, ondeCristo declara deixar todo o direito legal aos sacerdotes, como a inimigos confessos do evangelho, que estavam sempre predispostos a vociferar-lhe em contrário, a não ser que lhes fosse fechada a boca. Portanto, se os sacerdotes papistas desejam manter tal possessão e herança, que se declarem abertamente companheiros daqueles que têm necessidade de que se lhes feche a boca para que não venham a blasfemar contra Cristo, porque o que ele deixa aos sacerdotes da lei de modo algum pertence aos verdadeiros ministros de Cristo.

João Calvino