Pois se dizem que os estou acusando falsamente, então que se adiantem e exibam
alguém, um só indivíduo que seja, que, através de doutrina de contrição desta
natureza, não fosse levado ao desespero, ou não interpusesse ao juízo de Deus a
aparência de compunção em vez da compunção verdadeira. Também já dissemos
em certo lugar que a remissão de pecados nunca lhes sobrevem sem o arrependimento,
porquanto ninguém, senão os aflitos e feridos pela consciência de seus pecados,
pode implorar sinceramente a misericórdia de Deus. Contudo, ao mesmo tempo
acrescentamos que o arrependimento não é a causa da remissão dos pecados.
Portanto, já eliminamos esses tormentos das almas, a saber, que a remissão de
pecados deve ser devidamente consumada. Já ensinamos que o pecador não deve
olhar para sua própria compunção, nem para suas próprias lágrimas, mas que fixe
ambos os olhos tão-somente na misericórdia do Senhor. Tão-somente lembramos
que são convocados por Cristo “os cansados e sobrecarregados” [Mt 11.28], quando
foi “enviado a proclamar o evangelho aos pobres, a curar os quebrantados de coração,
a pregar remissão aos cativos e a libertar os encarcerados, a consolar os que
pranteiam” [Is 61.1, 2; Lc 4.18]. Pelo que, não só os fariseus seriam excluídos, os
quais, fartos de sua própria justiça, não se dão conta de sua indigência, mas também
os desprezadores que, despreocupados com a ira de Deus, não buscam remédio para
seu mal. Porque esses não se afadigam, nem estão sobrecarregados, nem são quebrantados de
coração, nem encarcerados, nem cativos. De fato, há muita diferença que
ensines que a remissão dos pecados é merecida por justa e plena contrição na qual o
pecador jamais pode engendrar, ou que o instruas a ter fome e sentir sede da misericórdia
de Deus, para que, mediante o reconhecimento de sua miséria, sua inquietação
de espírito, sua lassitude, seu cativeiro, lhe mostres onde se deve buscar refrigério,
descanso, liberdade, enfim, o ensines a dar glória a Deus em sua humildade.
João Calvino