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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A INSISTÊNCIA NA JUSTIFICAÇÃO PELO MÉRITO DAS BOAS OBRAS POR PARTE DOS ESCOLASTAS, PRINCIPALMENTE DE PEDRO LOMBARDO, É REPELIDA POR AGOSTINHO E PELA ESCRITURA

E assim as escolas da Sorbonne, mães de todos os erros, nos subtraíram a justificação pela fé, que é a suma de toda piedade. Com efeito confessam, por palavra, que os homens são justificados pela fé formada;  mas em seguida explicam dizendo que isso se deve a que as obras tomam da fé o valor e a virtude de justificar, de sorte que parecem mencionar a fé quase que por desdém, pois sempre que ela é reiterada pela Escritura, não se podia passar em silêncio sem ingente constrangimento. Ademais, ainda não satisfeitos, surrupiam a Deus no louvor das boas obras para o transferirem ao homem. Pois vendo que as boas obras valem bem pouco para enaltecer o homem, e que propriamente não podem ser chamadas méritos se são tidas como fruto da graça de Deus, as deduzem da faculdade do livre-arbítrio, exatamente como tirar óleo de uma pedra. E de fato não negam que a causa principal esteja na graça. Entretanto, ainda contendem que nisso não se exclui o livre-arbítrio, mediante o qual seja todo mérito. Isto é ensinado não só pelos sofistas posteriores, mas também Pedro Lombardo, o Pitágoras deles, a quem, se comparas com estes, provavelmente dirás que são sóbrios.
Realmente, foi de uma estarrecedora cegueira que este homem, quando tantas vezes tivesse nos lábios a Agostinho, não percebesse de quão grande solicitude aquele varão se acauteloupara que o homem não derivasse das boas obras qualquer partícula de glória. Acima, quando se discutia acerca do livre-arbítrio, mencionamos alguns testemunhos seus nesta matéria, semelhantes aos quais amiúde se repetem em seus escritos, sempre que veda que jamais nos gloriemos de nossos méritos, porque também eles próprios são dádivas de Deus, e quando escreve que todo e qualquer mérito nosso só nos é dado pela graça, não se alcança através de nossa suficiência, antes, tudo nos provém da graça etc. Não é de estranhar que o supracitado Pedro Lombardo não tenha sido iluminado com a luz da Escritura, visto que não se exercitava muito nela. Entretanto, não se pode desejar nada mais claro contra ele e seus discípulos do que esta palavra do Apóstolo, quando, depois de proibir aos cristãos toda vanglória, adiciona a razão por que não é lícito gloriar-se: “Porque somos feitura de Deus, criados em Cristo para as boas obras, as quais preparou de antemão para que andássemos nelas” [Ef 2.10]. Portanto, uma vez que de nós nada provenha de bom, senão na medida em que formos sendo regenerados, contudo toda nossa regeneração procede de Deus, sem exceção, não há por que nas boas obras reivindiquemos para nós sequer um mínimo. Finalmente, enquanto reiteradamente inculcam as boas obras, contudo de tal maneira instruem as consciências que jamais ousam confiar que Deus lhes seja propício e favorável às suas boas obras. Nós, porém, por outro lado, sem nenhuma referência a mérito, contudo com nosso ensino levantamos o ânimo dos fiéis com singular consolação, enquanto lhes ensinamos que suas obras são agradáveis a Deus e eles mesmos indubitavelmente lhe são aceitos. Senão que também aqui exigimos que ninguém intente ou empreenda obra alguma sem fé, isto é, sem antes haver-se assegurado bem em seu coração de que compreende que a boa obra agradará a Deus.

João Calvino