Entretanto, para que se deslinde isto, é preciso inquirir o que constitui tão horrenda
abominação desta natureza para a qual não haverá nenhuma remissão. Como
Agostinho a define em algum lugar: a renitência obstinada até à morte, com a desesperança
de perdão, não se enquadra suficientemente com as próprias palavras de
Cristo: “Não haverá de ser perdoado neste mundo” [Mt 12.32]. Ora, ou isto se diz
em vão, ou o pecado imperdoável pode ser cometido nesta vida. Mas, se essa definição
de Agostinho é verdadeira, então ele não é cometido a não ser que persista até à morte. Outros dizem que peca contra o Espírito Santo aquele que inveja a graça
conferida a um irmão. Não vejo de onde isso foi tomado. Apresentemos, porém, a
definição verdadeira, a qual, no momento em que for comprovada com firmes testemunhos,
por si só suplantará facilmente a todas as demais. Portanto, digo que pecam
contra o Espírito Santo os que de tal maneira são tocados por ele que não
podem pretender ignorância, e contudo resistem com deliberada malícia simplesmente
por resistir.
42 Pois Cristo, a fim de explicar o que havia dito, acrescenta logo
em seguida: “Quem disser uma palavra contra o Filho do Homem, isso lhe será
perdoado; quem, no entanto, houver blasfemado contra o Espírito Santo, isso não
lhe será perdoado.” E Mateus [12.31] põe em lugar de “blasfêmia contra o Espírito”
a expressão “o Espírito de blasfêmia”.
Como pode alguém lançar um ultraje ao Filho e, ao mesmo tempo, não se volte
contra o Espírito? De fato, podem fazê-lo aqueles que, insipientes, atacam a verdade
de Deus a si desconhecida, aqueles que, por ignorância, maldizema Cristo, possuídos,
entrementes, deste espírito, que não queiram extinguir a verdade de Deus,
lhes fosse ela revelada, ou ferir, com uma só palavra, esse a quem soubessem ser o
Cristo do Senhor. Esses pecam contra o Pai e contra o Filho. Assim, muitos são hoje
os que execram impiamente o ensino do evangelho, o qual, se soubessem ser do
evangelho, estariam preparados para reverenciá-lo de todo o coração.
Aqueles, porém, cuja consciência está convicta de que o que repudiam e impugnam
é a Palavra de Deus, contudo, não cessam de impugná-la, lemos que esses
blasfemam contra o Espírito, uma vez que estão a lutar contra a iluminação que é
obra do Espírito Santo. Tais eram alguns dentre os judeus que, embora não pudessem
resistir ao Espírito que falava através de Estêvão [At 6.10], no entanto porfiavam
em resistir. Não há dúvida de que muitos dentre eles estavam fazendo isso
arrebatados pelo zelo da lei; mas, é evidente, havia outros que se enfureciam contra
o próprio Deus por maligna impiedade, isto é, contra um ensino que não desconheciam
provir de Deus. Tais eram também os próprios fariseus, contra os quais o
Senhor investe, os quais, com o fim de desacreditar o poder do Espírito Santo, o
infamavam com o nome de “Belzebu” [Mt 9.34; 12.24]. Este, pois, é o espírito de
blasfêmia, quandoa ousadia do homem se atira deliberadamente ao ultraje do nome
divino. A isto acena Paulo, quando ensina haver alcançado misericórdia porque havia
cometido tais transgressões em ignorância e por incredulidade [1Tm 1.13], em
virtude da qual doutra sorte teria sido indigno da graça do Senhor. Se a ignorância
unida com a incredulidade fez que ele obtivesse perdão, segue-se daqui que não há
lugar para perdão onde à incredulidade se acrescenta o conhecimento.
João Calvino