Total de visualizações de página

sábado, 1 de setembro de 2018

A REGENERAÇÃO LIVRA DA SERVIDÃO DO PECADO, CUJOS RESQUÍCIOS, NO ENTANTO, SEMPRE PERTURBARÃO A VIDA DO CRENTE

Portanto, assim são os filhos de Deus libertados da servidão do pecado mediante a regeneração: não que, como se já houvessem adquirido plena posse da liberdade, não sintam mais nenhuma perturbação de sua carne; antes, permanece neles perpétua razão para luta, período em que são postos em xeque, mas para que melhor apreendam por meio de sua fraqueza. E nesta matéria concordam entre si todos os escritores de juízo mais saudável: que subsiste no homem regenerado uma fogueira de mal, donde crepitam incessantemente desejos que o atraem a pecar e o excitam. Confessam, ademais, que os santos são a tal ponto mantidos enredados por essa enfermidade de concupiscência, que não podem impedir que freqüentemente sintam comichões e sejam incitados ou à licenciosidade, ou à avareza, ou à ambição, ou a outros vícios. Tampouco se faz necessário fatigar-se muito em investigar o que os antigos aqui sentiram, quando para isto basta o testemunho de Agostinho que coligiu, fielmente e com grande diligência, as opiniões de todos. Portanto, que os leitores tomem dele, caso queiram ter algo de certo quanto ao sentimento da antigüidade. Entretanto entre ele e nós pode parecer interpor-se esta discrepância: que realmente ele, enquanto concede que os fiéis, por quanto tempo habitam no corpo mortal, são de tal modo mantidos atados pelas concupiscências, que não podem deixar de ceder a seu impulso, todavia não ousa chamar pecado a esta enfermidade; contente, porém, com o termo fraqueza, para designá-la ensina que se pode então tornar pecado, finalmente, quando além da concepção ou apreensão da mente segue o ato ou o assentimento, isto é, quando a vontade segue o primeiro impulso do apetite. Nós, ao contrário, temos por pecado essa mesma disposição em função da qual o homem é tangido simplesmente por algum desejo contra a lei de Deus; mais ainda, afirmamos ser pecado a própria depravação que nos gera desejos dessa natureza. Ensinamos, pois, que até que se despojem do corpo mortal sempre há pecado nos santos, visto que reside em sua carne essa inclinação para a concupiscênciaque se digladia com a retidão. Contudo, Agostinho nem sempre se abstém do termo pecado nesta acepção, como quando diz: “Com esta palavra pecado, Paulo se reporta à fonte da qual nascem todos os pecados, isto é, à concupiscência carnal. Este pecado, no que diz respeito aos santos, perde seu reino na terra e perece no céu.” Confessando com essas palavras que até onde os fiéis são susceptíveis às concupiscências da carne, eles são culpáveis de pecado.

João Calvino