No entanto, ainda inserirei isto: quando o termo arrependimento é transferido
para esta expressão externa, ele é impropriamente destituído daquele sentido genuíno
que fixei. Pois não é tanto uma reversão para Deus quanto uma confissão de
culpa, com deprecação do castigo e da culpabilidade. Assim, “arrepender-se em cinza e cilício” [Mt 11.21; Lc 10.13], outra coisa não ésenão testificar de nossa insatisfação
pessoal, quando Deus se ira contra nós em vista de ofensas graves. E esta é, na
verdade, uma expressão pública de confissão, mercê da qual, condenando-nos a nós
mesmos diante dos anjos e do mundo, antecipamos o juízo de Deus. Pois, condenando
o descaso daqueles que são indulgentes em relação a seus pecados, Paulo diz:
“Se julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” por Deus [1Co 11.31].
Mas nem sempre é necessário fazer os homens abertamente cônscios e testemunhas
de nosso arrependimento; confessar, porém, a Deus em particular é parte do
verdadeiro arrependimento, parte esta que não pode ser omitida. Ora, não há nada
menos congruente que Deus perdoar pecados nos quais nós mesmos nos lisonjeamos
e que, para que ele não os traga à luz, os disfarçamos pela dissimulação. Nem é
apropriado apenas confessar os pecados que cometemos cada dia; na verdade, as
quedas mais graves devem arrastar-nos mais longe e trazer-nos à lembrança coisas
que parecem sepultadas há muito, o que Davi nos prescreve por seu próprio exemplo.
Pois, tangido pela vergonha da transgressão recente, a si mesmo se examina até
o ventre da mãe e reconhece que já então fora corrompido e infectado pela mácula
da carne [Sl 51.3-5]. Ele não faz isso para atenuar sua culpa, como fazem muitos
que se ocultam na turba, e a outros envolvendo consigo, procuram alcançar impunidade.
Davi age de uma forma bem diferente, o qual agrava francamente sua culpa,
visto que, corrompido desde a própria infância, não cessará de cumular feitos maus
sobre feitos maus. Também em outro lugar [Sl 25.7] empreende ele tal exame de sua
vida passada, que implora a misericórdia de Deus sobre os pecados de sua mocidade.
E então, por fim, de fato provaremos haver-nos sacudido a letargia, se a
gemer sob o fardo e a deplorar nossos feitos maus rogarmos alívio da parte de Deus.
Além do mais, é preciso notar-se que o arrependimento, ao qual somos constantemente
instados a entregar-nos, difere desse que, por assim dizer, levanta da morte
aqueles que ou caíram mais vergonhosamente, ou, com desenfreado desbragamento,
se arremeteram a pecar, ou alijando de si o julgo de Deus como que por uma
espécie de defecção. Ora, a Escritura freqüentemente, exortando ao arrependimento,
expressa como que uma passagem e ressurreição da morte para a vida, e ao
indicar que o povo se arrependera, significa que ele voltou as costas à idolatria e a
outras perversões crassas. Razão por que Paulo preceitua o luto aos pecadores que
não se arrependeram“de sua libertinagem, fornicação e impudicícia” [2Co 12.21].
Esta distinção tem de ser diligentemente observada, para que, onde ouvimos
que poucos são chamados ao arrependimento, não se nos insinue sorrateiramente
uma presumida segurança, como se a mortificação da carne não mais nos dissesse
respeito, cuja preocupação não permitem remitir os depravados desejos que sempre
nos incitem e os vícios que em nosso íntimo pululam a todo tempo. Portanto, o
arrependimento especial, que se exige de apenas certos pecadores, a quem, arrancados ao temor de Deus, o Diabo enredilhou em laços fatais, não anula o arrependimento
ordinário, a que a corrupção da natureza nos compele a dar atenção por todo
o curso da vida.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32