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sábado, 1 de setembro de 2018

A CHAMADA PENITÊNCIA EXTERIOR É, AFINAL, CONFISSÃO DE CULPA E PECADO ANTES QUE EXPRESSÃO REAL DO ARREPENDIMENTO

No entanto, ainda inserirei isto: quando o termo arrependimento é transferido para esta expressão externa, ele é impropriamente destituído daquele sentido genuíno que fixei. Pois não é tanto uma reversão para Deus quanto uma confissão de culpa, com deprecação do castigo e da culpabilidade. Assim, “arrepender-se em cinza e cilício” [Mt 11.21; Lc 10.13], outra coisa não ésenão testificar de nossa insatisfação pessoal, quando Deus se ira contra nós em vista de ofensas graves. E esta é, na verdade, uma expressão pública de confissão, mercê da qual, condenando-nos a nós mesmos diante dos anjos e do mundo, antecipamos o juízo de Deus. Pois, condenando o descaso daqueles que são indulgentes em relação a seus pecados, Paulo diz: “Se julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados” por Deus [1Co 11.31]. Mas nem sempre é necessário fazer os homens abertamente cônscios e testemunhas de nosso arrependimento; confessar, porém, a Deus em particular é parte do verdadeiro arrependimento, parte esta que não pode ser omitida. Ora, não há nada menos congruente que Deus perdoar pecados nos quais nós mesmos nos lisonjeamos e que, para que ele não os traga à luz, os disfarçamos pela dissimulação. Nem é apropriado apenas confessar os pecados que cometemos cada dia; na verdade, as quedas mais graves devem arrastar-nos mais longe e trazer-nos à lembrança coisas que parecem sepultadas há muito, o que Davi nos prescreve por seu próprio exemplo. Pois, tangido pela vergonha da transgressão recente, a si mesmo se examina até o ventre da mãe e reconhece que já então fora corrompido e infectado pela mácula da carne [Sl 51.3-5]. Ele não faz isso para atenuar sua culpa, como fazem muitos que se ocultam na turba, e a outros envolvendo consigo, procuram alcançar impunidade. Davi age de uma forma bem diferente, o qual agrava francamente sua culpa, visto que, corrompido desde a própria infância, não cessará de cumular feitos maus sobre feitos maus. Também em outro lugar [Sl 25.7] empreende ele tal exame de sua vida passada, que implora a misericórdia de Deus sobre os pecados de sua mocidade. E então, por fim, de fato provaremos haver-nos sacudido a letargia, se a gemer sob o fardo e a deplorar nossos feitos maus rogarmos alívio da parte de Deus. Além do mais, é preciso notar-se que o arrependimento, ao qual somos constantemente instados a entregar-nos, difere desse que, por assim dizer, levanta da morte aqueles que ou caíram mais vergonhosamente, ou, com desenfreado desbragamento, se arremeteram a pecar, ou alijando de si o julgo de Deus como que por uma espécie de defecção. Ora, a Escritura freqüentemente, exortando ao arrependimento, expressa como que uma passagem e ressurreição da morte para a vida, e ao indicar que o povo se arrependera, significa que ele voltou as costas à idolatria e a outras perversões crassas. Razão por que Paulo preceitua o luto aos pecadores que não se arrependeram“de sua libertinagem, fornicação e impudicícia” [2Co 12.21]. Esta distinção tem de ser diligentemente observada, para que, onde ouvimos que poucos são chamados ao arrependimento, não se nos insinue sorrateiramente uma presumida segurança, como se a mortificação da carne não mais nos dissesse respeito, cuja preocupação não permitem remitir os depravados desejos que sempre nos incitem e os vícios que em nosso íntimo pululam a todo tempo. Portanto, o arrependimento especial, que se exige de apenas certos pecadores, a quem, arrancados ao temor de Deus, o Diabo enredilhou em laços fatais, não anula o arrependimento ordinário, a que a corrupção da natureza nos compele a dar atenção por todo o curso da vida.

João Calvino