Com efeito, se é verdadeiro o que é mui evidente, que toda a soma do evangelho
se contém nestes dois tópicos: arrependimento e perdão dos pecados, porventura
não vemos que o Senhor por isso graciosamente justifica os seus, para que, ao mesmo
tempo, os restaure à verdadeira justiça, mediante a santificação de seu Espírito?
João, o mensageiro enviado adiante da face de Cristo para preparar-lhe os caminhos
[Mt 11.10], pregava: “Arrependei-vos, pois, porque está próximo o reino dos
céus” [Mt 3.2]. Ao convidá-los ao arrependimento, os advertia a que se reconhecessem
pecadores e todas as suas obras fossemcondenadas diante do Senhor, para que,
de todos os seus anseios, buscassem a mortificação de sua carne e a nova regeneração
no Espírito. Em anunciando o reino de Deus, João conclamava à fé, porque por
esse reino de Deus, que ensinava estar próximo, significava o perdão dos pecados, a
salvação, a vida e tudo quanto alcançamos absolutamente em Cristo. Em razão do
quê se lê nos outros evangelistas: “João veio pregando o batismo do arrependimentopara
o perdão dos pecados” [Mc 1.4; Lc 3.3]. Porque, que outra coisa é isso senão
que, oprimidos e extenuados pelo fardo dos pecados, se voltassem para o Senhor e
concebessem a esperança de remissão e salvação?
Também Cristo assim iniciou suas pregações: “O reino de Deus está próximo;
arrependei-vos e crede no evangelho” [Mc 1.15]. Nessas palavras, primeiro declara
que os tesouros da misericórdia de Deus estão abertos em si; em seguida, exige o
arrependimento; então, finalmente, a confiança nas promessas de Deus. E assim,
quando quis condensar sumariamente toda a soma do evangelho, disse que lhe importava
sofrer e ressurgir dos mortos, ser pregado em seu nome arrependimento e
remissão dos pecados [Lc 24.26, 46, 47].
Isso mesmo também pregaram os apóstolos após sua ressurreição: “que foi reerguido
por Deus para dar arrependimento a Israel e remissão dos pecados” [At 5.30,
31]. Prega-se o arrependimento em nome de Cristo, quando, através do ensino do
evangelho, os homens ouvem que todos os seus pensamentos, seus sentimentos,
seus esforços são corruptos e viciosos, em vista do quê se faz necessário que nasçam
de novo, se querem entrar no reino de Deus. Prega-se a remissão dos pecados
quando os homens são ensinados que Cristo se fez para eles redenção, justiça, salvação
e vida [1Co 1.30], em cujo nome são tidos, graciosamente, por justos e inocentes
à vista de Deus. Já que uma e outra dessas duas graças é apreendida pela fé,
como foi demonstrado em outro lugar, visto que a bondade de Deus é o próprio objeto da fé, pela qual são remitidos os pecados, fez-se necessário distingui-la diligentemente
do arrependimento.
João Calvino