QUÃO DISTANTE DA PUREZADO EVANGELHO ESTÁ TUDO QUANTO
OS SOFISTASENSINAM EM SUAS ESCOLAS A RESPEITO DO ARREPENDIMENTO.
ONDE SE TRATA DE CONFISSÃO E SATISFAÇÃO
Chego agora à consideração daquelas coisas que os sofistas escolásticos têm ensinado
a respeito do arrependimento, as quais passarei em revista com a máxima brevidade,
porquanto minha intenção não é comentar tudo, para que este livro, que
estou a esforçar-me por apresentar como um manual de instrução, não se dilate
desmesuradamente. Por outro lado, eles escreveram sobre tema de maneira tão confusa,
que não será fácil a saída, uma vez que nos tenhamos embrenhado no labirinto
de suas disputas. Primeiramente, em dando-lhe a definição, mostram claramente que jamais entenderam
a natureza do arrependimento. Ora, apanham certos ditos de livros dos
antigos que longe estão de exprimir o sentido do arrependimento. Afirmam que arrepender-se
equivale a chorar os pecados já cometidos e depois não cometer pecados
pelos quais já chorou. E também, que é prantear os malfeitos passados e não
cometer outra vez malfeitos a serem ainda pranteados. Igualmente, que é certa
punição dolorosa, a qual castiga em si o que deplora haver cometido. Ainda, que é
a dor de coração e a amargura de alma em razão de atos maus que cada um tenha
cometido ou com os quais tenha consentido. Concedamos, pois, que estas coisas foram ditas com propriedade pelos antigos
– o que ao contencioso não seria difícil negar; entretanto, elas não foram ditas neste
sentido, a saber, para descreverem o arrependimento, mas apenas para que exortassem
aos seus, a fim de que não caíssem de novo nos mesmos delitos dos quais
haviam sido poupados. Porque, se a intenção fosse converter em definições todas as
afirmações desse molde, também outras, com não menor direito, se deveriam mencionar. Dessa natureza é este argumento de Crisóstomo: “O arrependimento é um
remédio que extingue o pecado, uma dádiva dada do céu, uma virtude admirável,
uma graça que supera a força das leis.” Acresce que a doutrina que depois ensinamé um tanto pior que estas definições.
Ora, estão a tal ponto teimosamente apegado aos exercícios exteriores, que de seus
desmesurados volumes nada maisse colige que ser o arrependimento uma disciplina
e austeridade que serve em parte para domar a carne e em parte para castigar e
punir os vícios. Quanto à renovação interior da mente, que traz consigo a verdadeira
correção de vida, fazem estranho silêncio. Na verdade, neles há muito palavreado
acerca de contrição e atrição. Atormentam as almas de muitos escrúpulos e inoculam
uma imensidade de inquietação e ansiedade; mas onde parecem haver ferido
fundamente os corações, sanam todo amargor com leve aspersão de cerimônias.
O arrependimento, definido de forma tão sutil, o dividem em contrição de coração,
confissão de boca e satisfação de obra, em nada com maior logicidade do
que o têm definido, se bem que parecem haver gasto toda a existência em formular
silogismos. Mas, se alguém arrazoasse da definição que propõem (gênero de argumentar
que prevalece entre os dialéticos) alguém poderia chorar os pecados previamente
cometidos e não cometer pecados a serem chorados; poderia prantear malfeitos
passados e não cometer malfeitos a serem pranteados; poderia punir o que deploraria
haver cometido etc. Visto que não os confessa com a boca, como defenderão
essa sua divisão? Ora, se o verdadeiramente contrito não faz confissão, pode
haver arrependimento sem confissão. Porque, se respondem que esta divisão se refere
ao arrependimento até onde é ele sacramento, ou se entende de toda a plenitude
do arrependimento, a qual não abrangem em suas definições, não há por que seja eu
acusado. Que eles próprios o imputem a si por não o definirem mais pura e mais
claramente. Eu, com efeito, em decorrência de minha obtusidade, quando se disputa
acerca de alguma coisa, tudo atribui à própria definição, a qual é o gonzo e fundamento
de toda a discussão.
Mas, deixemos que tomem esta licença como mestres e doutores, e consideremos
agora em ordem as próprias partes desta divisão. Passo negligentemente em
silêncio como sendo frívolas as coisas que apregoam, com cenho carregado, como
mistérios solenes, porém não o faço por desconhecimento. Pois não me seria mui
laborioso perscrutar todas e quaisquer coisas que pensam ser por eles debatidas
com argúcia e sutileza; eu, porém, teria escrúpulos em cansar sem proveito aos
leitores com tais frivolidades. Certamente que das questões que movem e agitam e
com as quais miseravelmente se emaranham, é fácil de se conhecer que os tais estão
a vociferar acerca de coisas deles desconhecidas.
Questão dessa natureza é esta: se porventura agrade a Deus o arrependimento
de um pecado, quando a obstinação perdura em outros. Igualmente: se os castigos
divinamente infligidos valem para satisfação. Também: se porventura é possível
renovar freqüentemente o arrependimento por pecados mortais, quando desavergonhada
e impiamente definem que se faz penitência diariamente só por pecados veniais.
De igual modo, muito se atormentam, em crasso erro, com o dito de Jerônimo
de que o arrependimento é “uma segunda tábua de salvação após o naufrágio”, no
que demonstram que jamais se despertaram de seu pesado torpor, para que viessem
a sentir sequer de longe a milésima parte de suas faltas.
João Calvino