Eu, porém, gostaria que os leitores atentassem para o fato de que não há aqui
uma rixa acerca “da sombra de um asno”; pelo contrário, trata-se da mais séria de
todas as causas, isto é, da remissão dos pecados. Ora, enquanto requerem três coisas
para o arrependimento: a compunção do Coração, a Confissão da boca e a satisfação
da obra, estão, ao mesmo tempo, ensinando que elas são necessárias para se
obter a remissão dos pecados. Entretanto, se algo nos importa saber em toda a religião,
certamente que isto importa sumamente, a saber, entender e sustentar honestamente
por que razão, com que lei, sob que condição, mediante que facilidade ou
dificuldade, se obtém a remissão dos pecados.
Salvo se esse conhecimento se mostra claro e seguro, a consciência não pode ter
absolutamente nenhum descanso, nenhuma paz com Deus, nenhuma confiança ou
segurança; ao contrário, treme continuamente, vacila, inquieta-se, tortura-se, atormenta-se,
apavora-se, odeia e foge da vista de Deus. Ora, se a remissão dos pecados
depende dessas condições às quais eles a atrelam, nada nos é mais desventurado e
mais digno de lástima.
Eles fazem da contrição o primeiro passo para obter-se o perdão e a exigem
como se deve, isto é, justa e plena. Mas, ao mesmo tempo, não fixam quando possa
alguém estar seguro de que nessa contrição tenha se desincumbido até a justa medida.
Na verdade confesso que se deve instar cuidadosa e veementemente a que, chorando
cada um amargamente seus pecados, mais se lhes aguce à insatisfação pessoal
e ao ódio, pois esta não é uma tristeza da qual se deva arrepender, a qual gera o
arrependimento para a salvação [2Co 7.10]. Quando, porém, se exige pungência de
tristeza que corresponda à grandeza de culpa e que na balança tenha de contrapesar
à confiança de perdão, aqui na verdade, de maneiras extraordinárias, são atormentadas
e atribuladas as míseras consciências, quando vêem ser-lhes imposta a devida
contrição dos pecados, nem alcançam a medida da dívida de sorte que possam ajuizar
consigo que já pagaram o que deviam. Caso digam que é preciso fazer o que está
ao alcance, somos trazidos sempre de volta ao mesmo ponto, pois quando ousará alguém garantir a si que já usou todos os recursos no lamento de seus pecados?
Portanto, quando, depois de terem por longo tempo as consciências lutado consigo
e em prolongados embates terem se empenhado, afinal não acham porto em que
descansem, para que, ao menos em certa medida, se acalmem, arranquem de si
pesar e espremam lágrimas com que alcancem sua contrição.
João Calvino