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sábado, 1 de setembro de 2018

A ANGUSTIANTE FALÁCIA DA CONTRIÇÃO ENGENDRADA PELOS ESCOLASTAS

Eu, porém, gostaria que os leitores atentassem para o fato de que não há aqui uma rixa acerca “da sombra de um asno”; pelo contrário, trata-se da mais séria de todas as causas, isto é, da remissão dos pecados. Ora, enquanto requerem três coisas para o arrependimento: a compunção do Coração, a Confissão da boca e a satisfação da obra, estão, ao mesmo tempo, ensinando que elas são necessárias para se obter a remissão dos pecados. Entretanto, se algo nos importa saber em toda a religião, certamente que isto importa sumamente, a saber, entender e sustentar honestamente por que razão, com que lei, sob que condição, mediante que facilidade ou dificuldade, se obtém a remissão dos pecados. Salvo se esse conhecimento se mostra claro e seguro, a consciência não pode ter absolutamente nenhum descanso, nenhuma paz com Deus, nenhuma confiança ou segurança; ao contrário, treme continuamente, vacila, inquieta-se, tortura-se, atormenta-se, apavora-se, odeia e foge da vista de Deus. Ora, se a remissão dos pecados depende dessas condições às quais eles a atrelam, nada nos é mais desventurado e mais digno de lástima. Eles fazem da contrição o primeiro passo para obter-se o perdão e a exigem como se deve, isto é, justa e plena. Mas, ao mesmo tempo, não fixam quando possa alguém estar seguro de que nessa contrição tenha se desincumbido até a justa medida. Na verdade confesso que se deve instar cuidadosa e veementemente a que, chorando cada um amargamente seus pecados, mais se lhes aguce à insatisfação pessoal e ao ódio, pois esta não é uma tristeza da qual se deva arrepender, a qual gera o arrependimento para a salvação [2Co 7.10]. Quando, porém, se exige pungência de tristeza que corresponda à grandeza de culpa e que na balança tenha de contrapesar à confiança de perdão, aqui na verdade, de maneiras extraordinárias, são atormentadas e atribuladas as míseras consciências, quando vêem ser-lhes imposta a devida contrição dos pecados, nem alcançam a medida da dívida de sorte que possam ajuizar consigo que já pagaram o que deviam. Caso digam que é preciso fazer o que está ao alcance, somos trazidos sempre de volta ao mesmo ponto, pois quando ousará alguém garantir a si que já usou todos os recursos no lamento de seus pecados? Portanto, quando, depois de terem por longo tempo as consciências lutado consigo e em prolongados embates terem se empenhado, afinal não acham porto em que descansem, para que, ao menos em certa medida, se acalmem, arranquem de si pesar e espremam lágrimas com que alcancem sua contrição.

João Calvino