Com efeito, para que toda a matéria se faça mais evidente e mais desembaraçada,
em primeiro lugar, mencionaremos fielmente que tipo de confissão nos foi ensinado
na Palavra de Deus; em seguida, também faremos menção de suas invenções,
certamente não todas (pois quem exauriria esse mar imenso?), mas apenas essas que
abarcam a suma de sua confissão secreta. Aqui envergonha relembrar quão freqüentemente
o tradutor antigo verteu o termo confessar em lugar de louvar, o que até aos ignorantes mais parvos foi dado a conhecer, exceto que vem a propósito pôr-se
à mostra sua ousadia em transferirem para seu edito tirânico o que fora escrito sobre
os louvores de Deus.
Para provar que a confissão tem o condão de alegrar as mentes, forçam essa
expressão do Salmo [42.4]: “na voz de exaltação e de confissão.” Ora, se tal metamorfose
semântica for tida como procedente, então podemos engendrar o que bem
quisermos. Quando, porém, a tal ponto tenham eles perdido o pejo, lembrem-se os
leitores piedosos de que pela justa represália de Deus foram entregues a uma mentalidade
réproba, para que sua ousadia viesse a ser ainda mais detestável.
Pois, se nos apraz aquiescer ao simples ensino da Escritura, não haverá perigo
de que alguém nos ludibrie com mentiras desse gênero. Pois ali se prescreve uma
forma de confissão, a saber, uma vez que o Senhor é Aquele que perdoa, esquece,
apaga os pecados, que a ele confessemos nossos pecados no propósito de obter seu
perdão. Ele é o médico: então, apresentemos-lhe nossas feridas. Ele foi ultrajado e
vilipendiado: dele, pois, roguemos paz. Ele é o que esquadrinha os corações e está
consciente de todos os pensamentos: apressemo-nos a derramar nosso coração diante
dele. Ele é, enfim, Aquele que chama a si os pecadores: não nos demoremos a
achegar-nos a ele. “Meu pecado”, diz Davi, “te fiz conhecido, e minha injustiça não
a escondi de ti. Eu disse: Contra mim confessarei minha injustiça ao Senhor e tu
remitiste a iniqüidade de meu coração” [Sl 32.5]. Tal é outra confissão do próprio
Davi: “Compadece-te de mim, ó Deus, segundo tua grande misericórdia” [Sl 51.1].
Tal é também a confissão de Daniel: “Temos pecado, Senhor, temos agido perversamente,
temos praticado impiedades e temos sido rebeldes, desviando-nos de teus
preceitos” [Dn 9.5].
E outras que ocorrem por toda parte nas Escrituras, cuja enumeração quase
encheria um volume. “Se confessarmos nossos pecados”, diz João, “fiel é o Senhor
para que nos perdoe nossos pecados” [1Jo 1.9]. Confessamo-nos a quem? Evidentemente
a ele próprio, isto é, se de coração aflito e abatido, diante dele nos prostrarmos,
se nos acusarmos e nos condenarmos sinceramente perante ele, roguemos para
que sejamos absolvidos por sua bondade e misericórdia.
João Calvino