Esta modalidade de confissão, contudo, convém que seja não só regular na Igreja,
mas ainda que seja usada de modo especial, então extraordinariamente, quando
houver acontecido que o povo venha a tornar-se culpado por alguma transgressão
em comum. Exemplo desta segunda modalidade de confissão temo-lo naquela solene
confissão pública que todo o povo apresenta sob os auspícios e direção de Esdras
e Neemias [Ne 1.7; 9.1, 2]. Ora, uma vez que a punição da defecção comum de
todos fora aquele longo exílio, a destruição da cidade e do templo, o desmantelamento
da religião, não podiam reconhecer o benefício da libertação, como era justo,
a não ser que antes se confessassem culpados.
Nem vem ao caso se numa congregação às vezes uns poucos são inocentes, pois
uma vez que são membros de um corpo debilitado e achacado, não devem gabar-se
de saúde. Com efeito, não pode acontecer que, contraído algum contágio, também
não sustenham eles próprios algo de culpa. Portanto, por quantas vezes somos afligidos
ou de pestilência, ou de guerra, ou de esterilidade, ou de outra calamidade
qualquer, se é de nosso dever refugiar-nos no luto, no jejum e outros sinais de culposidade,
muito menos se deve negligenciar a própria confissão geral, da qual dependem
todos esses outros elementos.
Aquela confissão ordinária, além de ser recomendada pela boca do Senhor, pesada
sua utilidade, ninguém de são juízo ousa desaprová-la. Ora, uma vez que em
toda reunião religiosa nos postremos diante de Deus e dos anjos, que outro nos será
o ponto de partida do proceder senão o reconhecimento de nossa indignidade? Mas,
dirás que esse reconhecimento ocorre em toda e qualquer oração, pois sempre que
oramos por perdão, estamos a confessar nossos pecados. Admito-o. Mas, se examinares
com cuidado quão grande é ou nosso senso de segurança, ou nossa letargia, ou nosso acomodamento, haverás de conceder-me que é uma ordenança salutar, se o
povo cristão é exercitado à humilhação mediante algum rito solene de confissão.
Ora, ainda que a cerimônia que o Senhor prescreveu aos israelitas resultava da função
pedagógica da lei, no entanto, a coisa em si de algum modo nos diz respeito
também a nós. E, com efeito, vemos ser este costume observado com proveito nas
igrejas bem reguladas, de sorte que em cada dia do Senhor o ministro repita, em seu
próprio nome e no do povo, uma forma de confissão, mediante a qual a todos acusa
de culpados de iniqüidade, e do Senhor suplique o perdão. Enfim, com esta chave se
abre uma porta para orar, tanto aos indivíduos, em particular, quanto a todos, publicamente.
João Calvino