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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

A INCONVENIÊNCIA DO VOCÁBULO MÉRITO, A DESPEITO DO USO QUE ANTIGOS AUTORES ECLESIÁSTICOS FIZERAM DELE

Primeiramente é preciso dizer isto acerca da palavra mérito: seja quem for que primeiro aplicou esse termo às obras humanas, confrontadas com o juízo de Deus,216 o mesmo fez algo muito inconveniente para manter a sinceridade da fé. Por certo que me abstenho de bom grado de logomaquias, porém desejaria que entre os escritores cristãosfosse sempre conservada esta sobriedade: que não usassem sem necessidade nem motivo termos não empregados na Escritura, que poderiam ser causa de grande escândalo e dariam bem pouco fruto.217 Pois, pergunto, a que fim serviu introduzir-se a palavra mérito, quando o valor das boas obras poderia ser explicado significantemente sem qualquer dano a outro termo? Quanto, porém, o próprio termo contenha em si de tropeço está patente com grande detrimento de todo o mundo. Evidentemente, como é um termo assaz eivado de presunçosa arrogância, nada pode senão obscurecer a graça de Deus e imbuir os homens de depravado orgulho. Reconheço, sem sombra de dúvida, que o usaram, a cada passo, os antigos escritores da Igreja, e prouvera que não houvessem oferecido matéria de erro aos pósteros pelo mau uso de uma simples palavrinha, visto que eles próprios também testificam em algumas passagens que não queriam que a verdade fosse prejudicada! Ora, assim fala Agostinho, em alguma parte: “Calem-se aqui os méritos humanos, os quais pereceram através de Adão, e reine a graça de Deus através de Jesus Cristo.” Igualmente: “Os santos nada atribuem a seus méritos; tudo atribuirão tão-só à tua misericórdia, ó Deus.” Ainda: “E quando o homem notar que tudo quanto tem de bom, não o tem por si mesmo, mas de seu Deus, então percebe que tudo isso que nele se louva é referente não a seus próprios méritos, mas à misericórdia de Deus.” Vês que, subtraída ao homem a capacidade de agir bem, rebaixa também a dignidade do mérito. Crisóstomo, porém diz: “Nossas obras, se alguma segue a graciosa vocação divina, são retribuição e dívida, mas as munificências de Deus são graça, e beneficência, e grandeza de liberalidade. Não obstante, deixado o termo de lado, joeiremos antes o fato. Com efeito, anteriormente citei de Bernardo a afirmação: “Como é bastante para o mérito não presumir de méritos, assim carecer de méritos é suficiente para juízo.” Mas, adicionada imediatamente a interpretação, abranda bastante a aspereza da expressão, quando diz: “Portanto, daí cuides ter méritos; uma vez obtidos eles, os haverás de reconhecer como dados; esperes o fruto, a misericórdia de Deus, e a todo perigo evadiste de pobreza, de ingratidão, de presunção. Feliz a Igreja à qual não faltam méritos sem presunção, nem presunção sem méritos.” E pouco antes mostrara sobejamente de quão pio sentido estivesse a fazer uso do termo: “Ora”, diz ele, “por que a Igreja vive tão solícita quanto a méritos, à qual mais firme e mais segura razão de gloriar se está no propósito de Deus? Deus não pode negar-se a si mesmo; ele fará o que prometeu. Assim, não há por que inquiras por quais méritos esperaremos benefícios, especialmente quando ouves: ‘Não por vossa causa, mas em atenção a mim’ [Ez 36.22, 32]. Para o mérito é suficiente saber que os méritos não sejam suficientes.”

João Calvino