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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O PRETENSO MÉRITO DAS OBRAS NÃO RESULTA DELAS, POIS SEMPRE SÃO IMPERFEITAS, MAS SOMENTE DA GRAÇA DE DEUS, QUE AS FAZEM ACEITÁVEIS

O que todas as nossas obras mereçam, a Escritura o mostra quando nega que possam suportar a vista de Deus, porquanto estão saturadas de imundície. Além disso, o que a perfeita observância da lei há de merecer (se algum merecimento existe), já que ela preceitua que nos consideremos servos inúteis, quando tivermos feito tudo o que nos foi prescrito [Lc 17.10], visto que nada gracioso oferecemos ao Senhor, ao contrário, apenas nos desincumbimos de obrigações devidas pelas quais não há que oferecer-se agradecimento? Entretanto, as boas obras que nos foram conferidas, também o Senhor as chama nossas e não só atesta que lhe são aceitas, mas ainda que haverão de receber galardão. Cabe-nos, por nossa vez, deixar-nos animar por tão grande promessa, e cobrar alento, para que não nos cansemos de fazer o bem [Gl 6.9; 2Ts 3.13] e a tão grande benignidade de Deus recebamos com verdadeira gratidão. Não há dúvida de que tudo quanto há nas obras que merece louvor é graça de Deus, que nenhuma gota há que devamos atribuir propriamente a nós mesmos. Se deveras e seriamente reconhecemos isso, então se desvanece não apenas toda e qualquer confiança de mérito, mas ainda a própria noção. Afirmo que não dividimos, como fazem os sofistas, o louvor das boas obras entre Deus e o homem; pelo contrário, o conservamos todo, inteiro e isento ao Senhor. Ao homem, apenas atribuímos isto: que com sua impureza polui e contamina essas mesmas coisas que eram boas. Pois nada procede do homem, por mais perfeito que ele seja, que não seja tisnado de certa mancha. Portanto, convoque o Senhor a juízo o que há de melhor nas obras humanas: por certo que nelas reconhecerá sua justiça; do homem, porém, a ignomínia e o opróbrio. Conseqüentemente, as boas obras agradam a Deus, nem são infrutíferas a seus autores; mais ainda: recebem os mais amplos benefícios de Deus à guisa de galardão, não porque assim mereçam, mas porque de si mesma a benignidade divina lhes atribui este valor. Qual, pois, não é essa perversidade, a qual não contentes com essa liberalidade de Deus, que galardoa com recompensas não devidas a obras que nada merecem, ainda procuramos com sacrílega ambição passar adiante, querendo que o que é próprio da liberalidade divina e a ninguém mais compete, se pague aos méritos das obras? Aqui invoco senso comum de cada um. Se esse que, por alheia liberalidade, tem usufruído de um campo, reivindica para si também a título de propriedade, porventura não merece que por ingratidão desta natureza perca essa própria posse que mantinha? De igual modo, se um servo libertado pelo senhor, encoberta a humildade de condição de liberto, pretende passar por nascido livre, porventura não é digno de que seja reduzido novamente a total servidão? Pois esta é, afinal, a maneira legítima de usufruir de um benefício: se não reivindicamos para nós mais do que foi dado, nem defraudamos de seu louvor ao autor do bem, senão que, antes, assim nos esforçamos para que de certo modo o que nos foi transferido se veja residindo nele. Se tal procedimento se mostrou em relação aos homens, considere cada um consigo mesmo quanto mais devemos usar em se tratando de Deus.

João Calvino