Com efeito, como o ódio ao pecado, que é o intróitodo arrependimento, primeiro
nos abre o acesso ao conhecimento de Cristo, que a ninguém mais se revela senão
a míseros e aflitos pecadores, que gemem, mourejam, estão sobrecarregados, sofrem
fome, padecem sede, consomem-se de dor e de miséria [Is 61.1-3; Mt 11.5, 28;
Lc 4.18], assim nos importa que nos diligenciemos em relação ao próprio arrependimento,
nele nos arrimando por toda a vida, perseguindo-o até o fim derradeiro, se
queremos permanecer firmes em Cristo. Ora, Cristo veio para chamar os pecadores,
sim, mas ao arrependimento [Mt 9.13]. Foi enviado a abençoar aos indignos, sim,
mas a fim de que cada um se converta de sua iniqüidade [At 5.36]. A Escritura está
repleta de expressões desse tipo.
Portanto, ondeDeus oferece remissão dos pecados, quase sempre costuma estipular
arrependimento de nossa parte, indicando que sua misericórdia deve ser para
os homens causa de arrependimento. “Fazei”, diz ele, “juízo e justiça, porque a
salvação se aproxima” [Is 56.1]. Igualmente: “Virá a Sião um redentor e àqueles que
em Jacó se arrependem de seus pecados” [Is 59.20]. Ainda: “Buscai o Senhor enquanto
se pode achar: invocai-o enquanto está perto. Deixe o ímpio seu caminho e a
iniqüidade de seus pensamentos, e se volte para o Senhor, e o Senhor se compadecerá
dele” [Is 55.6, 7]. Ainda: “Voltai-vos e arrependei-vos, para que vossos pecados
sejam apagados” [At 3.19]. Entretanto, deve-se observar que Deus não impõe esta
condição de tal forma como se nosso arrependimento fosse o fundamento da obtenção
do perdão; senão que, antes, o Senhor decidiu ter compaixão dos homens para
este fim: que se arrependam – indicando a que rumo se devam inclinar-se, caso
queiram obter a graça.
Portanto, enquanto habitamos no cárcere de nosso corpo, temos de lutar continuamente
com as imperfeições de nossa natureza corrupta; na verdade, com nossa
alma natural. Platão39 diz algumas vezes que a vida do filósofo é a meditação da
morte. Com verdade maior, podemos dizer que a vida do cristão é um contínuo
esforço e exercício para a mortificação da carne, até que, morta inteiramente, o
Espirito de Deus obtenha em nós o reino. Portanto, julgo que aquele que aprendeu a
ficar profundamente insatisfeito consigo mesmo aprendeu muito de proveito, não
para permanecer estacionado neste lamaçal, sem dar um passo além; antes, pelo
contrário, de modo que se apresse para Deus e por ele suspire; para que, enxertado
na morte e na vida de Cristo, se aplique ao perpétuo arrependimento, como, na verdade, não o podem fazer menos os que possuem genuíno ódio do pecado, porque
ninguém jamais odeia o pecado, a não ser que antes se sinta dominado pelo amor da
justiça. Esta interpretação, como de todas era a mais simples, assim me pareceu
coadunar-se excelentemente com a verdade da Escritura.
João Calvino